O historiador britânico Tony Judt publicou em 1998 um estudo, O Peso da Responsabilidade, entretanto traduzido pelas Edições 70 (com introdução minha), que deveria ser de leitura obrigatória em cursos de história contemporânea, ciência política, sociologia ou jornalismo. O título condensa de forma perfeita a proposta do autor: partir da vida e da obra de três pensadores franceses com grande impacto público no seu tempo para mostrar de que forma, embora fossem pessoas com percursos, convicções e atitudes bem diferentes, coincidiram no entendimento do seu papel de intelectuais de perfil público como instrumento vital da cidadania.
Cada um o fez à sua maneira. O político Léon Blum (1872-1950), chamado por Judt de «profeta desprezado», teve de lutar, sendo judeu e socialista, contra o antissemitismo e todos aqueles que, no seu próprio campo político, propunham como estratégia uma conciliação com o capital. O escritor Albert Camus (1913-1960) é apelidado de «moralista obstinado» por ter combatido, muitas vezes a contracorrente de uma esquerda que considerava sua, e muitas vezes sozinho, em nome de uma dimensão ética da vida pessoal e da atividade pública. Já o filósofo e sociólogo Raymond Aron (1905-1983), é por Judt considerado um «insider periférico», uma vez que, embora alinhado no campo da direita, assumiu muitas posições que esta tradicionalmente rejeita.
Os três partilharam uma escolha difícil: a de assumir um pensamento e uma voz ao mesmo tempo comprometidos e independentes, que a partir do seu lugar de intelectuais públicos – pensadores, artistas ou agentes culturais com atenção ao que à sua volta ocorria e interventivos – muitas vezes contrariou as escolhas dominantes no seu próprio campo político, tornando-os com frequência incompreendidos por muitos daqueles de quem no plano dos princípios essenciais estavam próximos. Daí a referência do historiador ao «peso da responsabilidade». Ou seja, à dura carga transportada sobre os ombros por quem, em nome da sua própria consciência e das suas convicções profundas, e apesar dos ventos contrários que os tocavam diretamente, defendeu perante os outros aquilo em que efetivamente acreditava.
Todos conhecemos pessoas que, mesmo em democracia – sob ditaduras, como sabemos, existem bem diversas e mais duras circunstâncias –, apesar de terem meios para o fazer e de se encontrarem em lugares que lhes asseguram alguma proteção, evitam expressar os seus pontos de vista sempre que vislumbrem a hipótese de isso lhes prejudicar a carreira profissional, de lhes fazer perder amizades ou de ficarem «mal vistos», preferindo, ainda que as sintam, omitir quaisquer divergências em relação às ideias preponderantes no seu campo de atividade ou doutrinário. Todavia, é muitas vezes pela expressão pública da divergência, ou pela crítica sustentada do pensamento dominante, que nas sociedades plurais se ultrapassam bloqueios, esclarecem consciências ou combatem iniquidades.
Porém, este efeito apenas é produzido, como ocorreu com os três intelectuais referidos por Tony Judt, quando quem fala tem um rosto e uma voz reconhecidos, olhando de frente quem pretende contradizer. E também, um imperativo neste perigoso tempo de máscaras, manipulações e cancelamentos, jamais se servindo do anonimato para disseminar, não a natural divergência ou a opção alternativa, mas a insídia, a mentira e a calúnia. Quem o faz em democracia não assume o peso da responsabilidade, sempre suportado por quem toma posições difíceis ou minoritárias, mas revela a mais vil e nociva cobardia. Como escreveu Ernest Hemingway em 1942, quando o nazismo ainda parecia invencível, «o pior defeito que alguém pode ter».
Rui Bebiano
Fotografia de Joana BourgardPublicado no Diário As Beiras de 18/11/2023