Imersos em experiências e práticas culturais profundamente influenciadas pelos valores essenciais do cristianismo, sendo ou não crentes crescemos confrontados com o versículo do Evangelho de São Lucas «Paz na Terra entre os homens de boa vontade», que dá o mote, em particular nesta altura do ano, a uma retórica generalizada de rejeição da guerra e de louvor da paz. Porém, a frase exprime uma contradição nos seus termos ao diferenciar os seres humanos que considera «de boa vontade» dos demais. Aliás, judaísmo, cristianismo e islamismo, as religiões do Livro, integram na sua experiência histórica palavras de aprovação da violência quando esta castiga quem abandone ou combata a «verdadeira» fé.
Sinal desta tendência é a antiga doutrina da «guerra justa», que no universo do cristianismo – surge logo em Agostinho e Tomás de Aquino, afirmando-se nos séculos XVI e XVII com os filósofos jusnaturalistas criadores do Direito Internacional – procurou definir em que condições a guerra pode ser uma ação legítima e moralmente justificada. Considerou que para alcançar a paz, ou a vitória de uma ordem política apoiada na fé, pode ser necessário fazer a guerra. Apesar da tradição desta noção de «guerra justa» ancorar nos interesses, perspetivas e contextos da época em foi criada e reconhecida, e estar hoje, nos seus termos, profundamente desatualizada, não deixa de colocar um problema de legitimidade da violência com o qual continuamos a confrontar-nos.
Este consiste na perceção de que o caráter destrutivo e desumano da guerra, de todas as guerras, bem como a necessidade de uma política de paz e colaboração entre povos e nações, destinada a permitir uma vida pacífica, equilibrada e fundada nos direitos humanos, depara muitas vezes com a necessidade, por razões de resistência ou de justiça, de fazer a guerra. Nos seus efeitos, esta não é melhor do que aquela que tem dominado o. trajeto da humanidade, provocando destruição, morte e sofrimento, de uma forma agravada hoje pelos efeitos da rápida evolução tecnológica que a acompanha. Mesmo a mais «justa» das guerras incorpora, sem dúvida, um mal imenso e insuportável.
Pode, porém, ocorrer um mal maior se não tiver lugar, como a história comprova. Sem as guerras travadas a partir de 1789 contra o poder absoluto dos reis este não teria sido derrubado, sem a resistência perante a agressão imperial napoleónica esta teria vencido, sem a luta contra a agressão externa e os inimigos internos a revolução bolchevique teria sido destruída, sem a frente unida militar contra o nazismo e o fascismo estes teriam vencido e dominado a Europa, sem as lutas de libertação contra a dominação colonial esta teria continuado, e a lista não te fim. Como hoje podemos dizer que sem a guerra de resistência à invasão russa a Ucrânia teria colapsado, ou que sem o combate dos curdos e dos palestinianos a voz destes povos teria sido definitivamente silenciada, ou que sem ter sido enfrentado o Exército Islâmico teria expandido o seu regime sanguinário e tirânico.
Após a derrota do nazismo, Albert Camus afirmou que «a paz é o único combate que vale a pena ser travado», por isso comportando custos. Já falar de «paz» em abstrato facilmente consubstancia uma aceitação da violência, da servidão ou do genocídio impostos por regimes iníquos. É a chamada «paz podre», ou a «paz dos cemitérios», traduzida na quietude, com frequência determinada por escolhas políticas, perante formas de agressão que transportam consigo a injustiça, a opressão, a resignação e mesmo a brutalidade, que em situações-limite jamais desparecem pela exclusiva intervenção dos apelos à razão ou das belas palavras. Ao pactuar com o agressor a defesa desta «paz» é uma perigosa forma de hipocrisia.
Rui Bebiano
Fotografia: Samuel Poromaa, Disabled, 2021Publicado no Diário As Beiras de 16/12/2023