Estamos a viver um período particularmente difícil e sangrento desse longo e dramático conflito que desde os finais do século XIX, e em especial a partir de 1946, tem como campo de batalha Israel e a Palestina, com reflexos imediatos nos países árabes da região, sobretudo no Líbano, na Jordânia e no Egito, e incessantes ondas de choque que atingem o mundo inteiro. Estas têm sido muito ampliadas na guerra iniciada a 7 de outubro com a ofensiva-surpresa dos grupos Hamas e Jihad Islâmica, apoiados pelo Irão, lançada a partir da Faixa de Gaza contra os colonatos judaicos, algumas cidades israelitas próximas e instalações militares.
A iniciativa causou de imediato um número de mortos israelitas que se estima acima dos 1.450, aos quais se associaram perto de 250 reféns, em grande parte civis, idosos, adolescentes e mesmo crianças, alguns raptados durante um festival de música para jovens. A resposta do governo de Israel não se fez esperar, atuando com uma violência e objetivos muito acima do imaginável, mesmo para quem conhece o conflito, a região e a natureza das forças envolvidas. Apesar dos objetivos serem formalmente militares, buscando a retaliação e a criação de condições para que o ataque não se repita, a iniciativa de Tel Aviv recorre à tática de «terra queimada», tendo causado já dezenas de milhares de mortos e uma escala de destruição inaudita, e transformando a operação num terrível genocídio.
A tática assumida pelo governo de Netanyahu – uma coligação reunindo a direita, a extrema-direita e setores ultraortodoxos judaicos – não usa qualquer máscara ou desculpa demagógica para negar a intenção destrutiva, da qual afinal é primeiro alvo a população palestiniana controlada pelo Hamas. Porém, ao contrário do que proclama pretender, ela está a isolar Israel e a ampliar até os apoios aos setores islamitas radicais, colocando a Autoridade Palestiniana numa posição difícil de sustentar. Ao mesmo tempo que inviabiliza a solução de dois Estados soberanos, a única que pode estabelecer uma paz duradoura, propaga em boa parte da opinião pública mundial uma vaga de rancor e ódio anti-israelita, e também antissemita, que agora demorará longos anos a desaparecer.
Esta tem vindo a instalar-se, de forma notória, em áreas e setores, próximos do universo académico da Europa e das Américas, onde estão a multiplicar-se, em associação com personalidades e grupos parciais ou mesmo radicalizados, manifestações públicas e eventos «científicos» destinados a culpabilizar «os judeus» no seu todo, ou os governos ocidentais que os não excluem. Sem acolher qualquer contraditório, estas iniciativas invertem o ónus da punição e desconsideram a complexidade da sociedade israelita e os direitos históricos dos judeus, não menores do que aqueles detidos, sem sombra de dúvida, pelos palestinianos. Seguem, na prática, a mesma estratégia de vingança proposta pelos grupos que pretendem instalar na região uma república islâmica. Ao mesmo tempo, quem os organiza rejeita a procura, no campo da ciência política, dos estudos históricos e sociológicos, do direito internacional e de outras áreas do conhecimento, de uma solução equilibrada que inclua uma paz justa. Ora, esta deveria ser uma responsabilidade também sua, dada a área de trabalho em que intervém e a influência que possui.
Escreveu o israelita Amoz Oz, no luminoso opúsculo «Contra o fanatismo», de 2004, que essa solução «vai doer como o diabo» e apenas será possível quando não for preciso optar entre estar a favor de Israel ou ser pró-Palestina, mas apenas «estar a favor da paz». Por sua vez, o libanês-palestiniano Samir Kassir, assassinado em Beirute em 2005, lembrou que «a desgraça árabe» é em parte alimentada por aqueles que perante um «futuro obstruído» apenas consideram a solução da guerra. Infelizmente, as palavras de ambos continuam justas. Salvo, e no referido campo de atividade tal deveria ser impossível, para quem observa apenas meia-realidade ou não faz uso da razão.
Rui Bebiano
Fotografia de Samuel Poromaa (Drip Drop, 2023)Versão ampliada de artigo saído no Diário As Beiras de 30/12/2023