A menos de dois meses das eleições legislativas, é boa altura para lembrar um dos males que ensombram este momento fulcral da vida das democracias representativas. Traduz a tendência para grande número de eleitores exercer o seu direito sem um conhecimento minimamente razoável dos programas e dos objetivos que lhe são propostos, sejam os do partido no qual habitualmente vota, sejam os daqueles que podem servir-lhe de alternativa ou de termo comparativo. Esta situação é agravada por um fenómeno análogo que ocorre em sentido inverso: a tendência dos partidos em disputa para simplificar em excesso as suas propostas e os seus discursos, procurando que estes sejam reconhecidos sem esforço pela ampla massa de cidadãos que não tem um efetivo interesse pelo debate político.
As formas que o problema toma são múltiplas. Começam pelo desinteresse pelo próprio momento eleitoral e por uma oca retórica «antipolíticos», fatores na origem do sempre amplo volume da abstencionistas. Incluem depois dificuldades de interação que decorrem de formas de iliteracia, da falta de hábitos de leitura, reflexão e debate, e do consequente défice de informação. Passam ainda pela tendência para pensar e agir de forma impulsiva, o que tende a diminuir o uso da razão em circunstâncias nas quais esta é necessária. Porém, a pior das formas que afetam o exercício do voto traduz-se na transferência para o campo da escolha política de um mecanismo comportamental em boa parte idêntico ao do «clubismo» desportivo, essa devoção excessiva a um clube que tolda a capacidade para reconhecer os seus problemas e faz dos adversários inimigos jurados.
No território da vida democrática, existe então um número muito grande de cidadãos que define a sua escolha apenas em função de critérios de fidelidade e de imutável certeza, sem abertura para comparar, rever e aceitar que o voto é um momento pessoal e circunstancial de reflexão, dúvida e escolha informada. Aqui, o espírito gregário associado ao partido, o peso da ideologia e a produção de fantasmas sobre o outro, por vezes, mesmo a influência de casos pessoais de estima ou aversão, são fatores combinados a determinar escolhas. Não se trata, como por vezes se afirma, de expressão de uma «convicção», necessária em política, ou de «coerência», meritória como bússola, mas de teimosia ou de cegueira, delas resultando a dificuldade em escutar os outros.
Esta situação afeta o funcionamento pleno da democracia. Desde logo, porque diminui o peso da razão individual, fator essencial de escolha e instrumento da liberdade. Depois, porque reduz a via do diálogo e do acordo, da qual sempre depende a salubridade da vida política. Em seguida, porque do voto determinado pela ignorância e pelo fechamento ao outro, quando não pela influência da coação, do ódio e do ressentimento, nada de bom pode resultar. Além disso, porque, ao reduzirem-se os horizontes do diálogo e do convívio, se limitam os quadros de governabilidade que devem sair das eleições. Por fim, porque sempre emergindo vencedores e vencidos dos resultados eleitorais, desta separação não podem resultar processos de acantonamento ou de exclusão que impedem as aproximações sempre necessárias na vida democrática.
Abraham Lincoln afirmou que se no momento do voto os eleitores «decidirem virar as costas ao fogo e queimar o traseiro, então terão de ficar sentados sobre as cinzas». Isto acontece com maior facilidade sem uma escolha minimamente informada, com sentido de responsabilidade cívica, e se for determinado pela inércia ou pela ignorância impostas pelo «clubismo» partidário. Este traduz uma doença que não desaparecerá da noite para o dia – tem sido reforçada até pelas estratégias agressivas do populismo –, mas para a qual importa sempre procurar um antídoto. Afastando a tentação de a usarmos para descrer da democracia, pois, lembrou ainda Lincoln, «o voto é sempre mais forte do que a bala».
Rui Bebiano
Fotografia de Samuel Poromaa, Sit, 2019Publicado no Diário As Beiras de 13/1/2024