Quando surgiu, o partido Chega foi por muitos considerado apenas um irritante epifenómeno da nossa democracia, algo que nunca passaria de um grupo de saudosos do antigo regime, ocasionalmente reunidos em redor de um fala-barato oportunista, que aproveitava a voga internacional do populismo internacional para dar voz a uma extrema-direita que, no fundo, não se acreditava poder ganhar grande peso no país de Abril. Nesta altura, o seu inegável crescimento, com a generalidade das sondagens a atribuir-lhe um mínimo de 14 ou 15% dos votos nas legislativas de março – não sendo impensável que possa ainda crescer mais desviando muitos votantes do PSD – mostra que aquele olhar inicial era afinal bastante ingénuo.
Bem mais preocupante, todavia, do que esse verosímil crescimento eleitoral é a solidez que o partido parece ter adquirido, patente na convenção decorrida no passado fim de semana. Como diversos comentadores notaram, já não se trata apenas de uma organização bastante caótica de pessoas que o sistema democrático e os partidos da direita tinham deixado de fora, muitas com visíveis problemas do foro emocional, começando nesta altura, de facto, a integrar outro tipo de pessoas e a ganhar uma aparente coerência. É certo que esta se apoia num conjunto de promessas impossíveis de cumprir e numa demagogia sem limites, mas nem por isso ela deixa de dar corpo a um todo orgânico agora já bem mais capaz de se fazer ouvir, e de convencer cidadãos, do que o fazia no tempo inicial da mera gritaria e das jantaradas de amigalhaços.
Ora acontece que, apesar de vivermos num dos países mais seguros do mundo, com bons índices de crescimento económico, uma inflação reduzida e um baixo volume de desemprego, com uma educação e uma saúde com alguns problemas, mas muito acima até da média europeia, existem bastantes pessoas que não são incluídas nesse cenário de relativa prosperidade. Não me refiro aqui apenas aos setores sociais que vivem com grandes dificuldades ou no limiar da pobreza, para os quais a o crescimento é invisível, pois não são estas pessoas que definem o militante-padrão do Chega, embora muitas possam tornar-se seus eleitores. Falo sobretudo de gente arrivista e ignorante, um padrão de cidadão-comum que não quer saber da realidade e reage às propostas políticas apenas pela exaltada via do instinto e do ódio, gente que as redes sociais ajudaram a sair da obscuridade e do silêncio onde vegetara durante décadas de democracia.
São estas pessoas que não se importam de utilizar a mentira e a manipulação, o rancor e o azedume, para reunir os descontentes da vida – que os há sempre em todas as sociedades – usando-os para se aproximarem do poder. Deles se servindo para tentarem acabar com o regime democrático, para restringirem direitos e para instituírem uma implacável e caótica «república dos brutos». Essas pessoas não podem ser desvalorizadas e as forças democráticas têm o dever, independentemente das suas naturais divergências, de as considerar o seu inimigo principal. Olhando-o nos olhos e combatendo-o todos os dias e por todos os meios. Antes que seja tarde e se perceba que o país de Abril foi derrotado pelos seus inimigos de sempre.
Rui Bebiano