Através de um artigo que me foi enviado, acabo de tomar conhecimento da edição em França, ocorrida em setembro do último ano, do livro Oublier Camus (Esquecer Camus), da autoria de Olivier Gloag, académico francês que ensina em Ashville, EUA, na Universidade da Carolina do Norte. A sua preocupação central é denegrir a personalidade e a obra de Albert Camus (1913-1960), um dos autores do século XX mais lidos em todo o mundo, e também um daqueles que, pelo seu humanismo e preocupação com a dimensão ética da política, maior e mais duradoura influência tem mantido ao longo do tempo, incluindo até hoje, mais de seis décadas transcorridas após a sua bem trágica e prematura morte.
O trabalho de Gloag, apresentado como grande novidade, repete falsidades e deturpações que o escritor franco-argelino escutou ainda em vida e têm sido regularmente retomadas. Ainda há uma dúzia de anos, durante uma sessão pública na qual falei sobre a vida e a obra de Camus, fui interpelado por um exaltado cidadão que, a partir da assistência, repetia iradamente os mesmíssimos «argumentos». Na verdade, o livro de Gloag propõe uma releitura de Camus assente em quatro lugares-comuns, já muitas vezes rebatidos, mas que sempre regressam, vindos da parte de quem, adepto de dogmas, se sente incomodado pela sua coerência visceral e pela sua independência de pensamento. O historiador Benjamin Stora, também ele argelino-francês, acaba de lembrar que existe uma vaga anticamuseana que ciclicamente renasce a cada dez anos.
Em primeiro lugar, considera-o «colonialista», quando o autor se bateu inicialmente por uma solução federalista e depois pela independência da Argélia, apenas rejeitando o terrorismo urbano, com bombas lançadas em bares e mercados de Argel julgadas «legítimas» pelos independentistas da Frente de Libertação Nacional. Em segundo, considera-o «adepto do modo de vida colonial», fazendo-o a partir de uma leitura de romances que escreveu na pele que lhe era própria: a de um francês nascido na Argélia, vivendo depois em França e sempre influenciado pela então pujante cultura francesa. Depois, em terceiro, julgando a sua defesa da «revolta» individual como um antídoto da «revolução» coletiva, quando o escritor considerou que uma não poderia viver sem a outra. Em quarto lugar, Gloag acusa Camus de «anticomunismo», quando o que Camus – «homem de esquerda, apesar dela», como sempre se definiu – desde cedo mostrou, foi uma oposição ao modelo estalinista e ao visceral constrangimento da liberdade de pensamento e de opinião que traduzia.
A estes chavões, Olivier Gloag junta ainda outro, este mais do foro pessoal, que sabe levar hoje a incompreensões anacrónicas e a julgamentos fáceis, em particular em certos territórios da academia: a de Camus ser um homem «profundamente machista». O romancista, jornalista e ensaísta foi de facto – como o personagem central do conhecido filme de François Truffaut estreado em 1978 – «um homem que gostava de mulheres», ao ponto de, nos anos finais, manter uma ligação simultânea com cinco, sendo uma aquela com quem estava casado. O que, tanto quanto sei, ainda não é crime. Além disso, é também verdade que, pelo que se conhece, a sua forma de abordar as mulheres era algo paternalista e gentil, mas jamais violenta. Seguia, afinal, o padrão dominante entre a larga maioria dos homens da época em que viveu, longe ainda das conquistas que muitas mulheres hoje obtiveram.
Tarefa bem difícil é conseguir a compreensão para isto da parte de certos académicos, pautados por uma incapacidade visceral para situarem cultural e historicamente as análises que apresentam como uma formidável «descoberta da pólvora». Como o acaba de comprovar Gloag.
Rui Bebiano