Poucas vezes escrevo apontamentos num registo autobiográfico. Entre outros motivos, porque sei que a autobiografia é sempre complacente e, em consequência, porque experimento algum pudor em expor aos outros essa indulgência. Porém, de vez em quando lá liberto um episódio, no qual, de uma forma óbvia, aos meus próprios olhos sairei bastante favorecido. Este é a propósito da tendência natural que tenho para resistir ao pensamento dogmático e às atitudes que, por fé, medo ou ignorância, excluem o olhar sempre crítico, embora em regra convicto, que nesta vida procuro manter.
Pelos meados de 1971, na altura em que militava numa organização estudantil de influência maoista, fui pela primeira vez mobilizado para escrever um panfleto. Tenho-o ainda guardado e, apesar do caminho que andei e da evolução política que depois fui tendo, se bem que já não me reconheça no seu conteúdo, reconheço-me ainda no modo não convencional como foi escrito. Era um panfleto contra a tentativa da extrema-direita estudantil, na academia de Coimbra, de retomar a Queima das Fitas, que fora suspensa no contexto da crise de 1969. Tinha como título «Queimar a Queima».
Quase todo o texto era composto de metáforas e alusões, com tiradas mais «literárias», se bem que tivesse uma intenção mobilizadora. Precisamente o contrário do registo habitual, cheio de clichés e frases expectáveis, do panfleto que os meus camaradas queriam que redigisse. Recordo bem o tom de crítica de um dos «responsáveis» à minha redação, sublinhando: «Devias ter intitulado isto ‘Viva a Justa Luta dos Estudantes Contra a Queima!’». Infelizmente para ele, o comunicado já tinha sido distribuído, e em consequência fui liminarmente «despedido» da tarefa de panfletário, regressando à base. Felizmente para sempre.
Fotograma de ‘La Chinoise’, filme de Jean-Luc Godard, saído em 1967