Sempre me pareceu dispensável o «dia de reflexão». Refiro-me às vinte e quatro horas que, entre nós e em mais alguns países, antecedem cada jornada eleitoral, sendo durante elas proibida qualquer iniciativa julgada perturbadora do sentido do voto ao influenciar, direta ou indiretamente, o eleitor. Por este motivo, além de as campanhas partidárias terminarem quando elas se iniciam, não podem então ser transmitidas, di-lo a Comissão Nacional de Eleições, «notícias, reportagens ou entrevistas que de qualquer modo possam ser entendidas como favorecendo ou prejudicando um concorrente às eleições em detrimento ou vantagem de outro». Ainda assim, não vamos tão longe por cá quanto os argentinos, que durante dois dias suspendem até as peças de teatro e os concertos.
Mergulhados numa era em que o acesso às notícias e às publicações das redes sociais dificilmente pode ser controlado e não depende da data da publicação, e, além disso, existindo agora até um dia reservado para o voto antecipado, essa limitação legal vai, entretanto, perdendo o rígido sentido que detinha. Mais: quando vivemos cada vez mais distantes dos tempos em que a validação do pensamento se encontrava associada ao silêncio das bibliotecas e das igrejas, ou à imposição doutrinária de quem manda ou ensina, a norma tende a tornar-se anacrónica. Porém, não querendo pisar a lei e suportar as consequências, irei respeitá-la nesta crónica. Saída num dia diferente dos outros.
Como não vivo na Lituânia – onde se inscreve na lei eleitoral a obrigação de suspender neste dia quaisquer artigos de opinião – abordo antes a forma como me parece poderem ser utilizadas, para melhor definirmos a nossa escolha, estas horas mais próximas do momento em que entraremos na cabina de voto. Dirigindo-me sobretudo a quem, votando ou não por critérios de lealdade partidária ou ideológica, considere o momento, não como uma afirmação de fé, mas como uma escolha racional e um exercício dessa liberdade conquistada, enquanto precioso e inalienável direito, completam-se agora cinquenta anos.
Importa então, nestas horas que temos para decidir qual a nossa escolha, observar quatro condições essenciais que podem orientar um sentido efetivamente consciente e positivo do nosso voto. Em primeiro, sendo individual, ele não deve ser individualista, ou egoísta, mas solidário e vinculado ao que acreditamos ser o bem comum. Em segundo, apesar de depender de um gesto pessoal, sempre falível porque humano, ele não pode ser irrefletido, resultando de um capricho momentâneo. Em terceiro lugar, deve articular-se com uma apreciação pessoal, o mais informada possível, dos diferentes modelos de governação e desenvolvimento em presença, não dependendo da fácil adesão a um rol de promessas irrealizáveis. E em quarto, precisa articular-se com uma disposição subjetiva que seja construtiva e solidária, jamais resultante de um momento de aversão ou de rancor.
Se desta forma orientarmos a reflexão e o sentido do voto, não cairemos na tendência, hoje com lugar nas democracias representativas, para ceder aos imperativos egoístas e aos apelos primários, orientados no sentido da divisão, de um «nós contra eles» que jamais trará algo de positivo. Poderão alguns leitores considerar que manifesto aqui uma dose de crença na sabedoria da maior parte dos eleitores, que darão prioridade ao interesse coletivo. Digo-lhes que acertaram, e, como escreveu Thomas Jefferson, que «a sabedoria do eleitorado» é vital para a democracia. Nem sempre se manifesta, é verdade, mas a maioria das vezes prevalece, e é por causa dela que a democracia, como a considera a reiterada afirmação de Churchill, «é a pior forma de governo, salvo todas as outras».
Rui Bebiano
Fotografia de Igor DemidovPublicado no Diário As Beiras de 9/3/2024