Se fosse forçado a viajar para uma ilha deserta e a ali permanecer incomunicável até ao meu último dia, e se antes de partir me dessem a hipótese de transportar comigo um caixote com livros, embora de um único autor, apesar do desgosto de deixar muitos para trás escolheria sem dúvida os de Albert Camus. Levaria absolutamente tudo o que escreveu e se encontra publicado em milhares de páginas: os romances, os ensaios filosóficos, os diários fragmentados, os combativos artigos de opinião, os discursos públicos, mesmo os apontamentos e notas de leitura espalhados por jornais e revistas, bem como as coletâneas de emotivas cartas que trocou com amigos, camaradas e amantes.
De tudo o que Camus me tem dado, e tem sido muito, talvez o mais importante seja a compreensão da indispensável associação da política à moral. Entendendo esta não como um tirânico e obsoleto «moralismo», mas antes – contrariando os terríveis preceitos deixados em O Príncipe, escrito em 1513 por Nicolau Maquiavel, para quem a política era sobretudo a arte da mentira e da dissimulação –, como uma exigência ética, capaz de colocar todo aquele que se interessa pela vida da «polis», da cidade, perante a necessidade e o dever de agir de forma não egoísta, de acordo com escolhas associadas aos princípios que proclama, ao dever da solidariedade e à voz da própria consciência. A moral aqui tomada, pois, como uma «ciência do bem e do mal».
Desta forma, aprendi com Camus que a Política com maiúscula de modo algum pode ser encarada a partir de uma perspetiva que tende a confundi-la com a intriga ou a chamada «politiquice», num processo de depreciação gratuita e indiscriminada do serviço público, hoje reforçado com o uso das redes sociais, que funciona como uma das principais armas do populismo, arrastando consigo tendências autoritárias e antidemocráticas que se supõe destinarem-se a «repor a ordem». Para os ingénuos ou desinformados é fácil confundir o trigo com o joio, pois existem, de facto, políticos demagogos ou oportunistas que em algum momento demonstram desleixo, incompetência ou ausência de respeito pelos seus concidadãos, envolvendo-se em situações de corrupção, nepotismo e abuso de poder.
Quem deprecia a nobreza da política, certas vezes por ignorância, mas mais normalmente para defender soluções ou pessoas apontadas como impolutas, infalíveis e «salvadoras», usa com frequência esses casos, generalizando a partir deles, para proclamar que os políticos «na verdade são todos iguais». Serve-se de um gesto, de uma frase, de uma escolha errada ou polémica de algum deles, e depois aplica-os a toda a sua atividade ou às práticas do partido a que pertence. É esta a estratégia simples e perigosa dos que procuram instalar a desconfiança e denegrir a democracia para assim a combaterem.
Desvalorizam também as pessoas convictas, honestas e dedicadas que ocupam cargos públicos ou praticam a cidadania servindo o melhor que podem, caluniando-as ou insinuando que são exceções. Na maioria das vezes, isto é falso, pois a larga maioria, concorde-se ou não com as suas escolhas plurais, merece gratidão por sair do conforto pessoal e pelo trabalho diário que leva a cabo. A política é imperfeita, como a democracia o é também, partilhando juntas um trajeto infinito de tentativa, erro e progresso, mas menosprezá-la abre o caminho à arbitrariedade e ao poder do mais forte. A arma da ética política, pela qual Camus pugnou e da qual continua a falar-nos, melhora-nos como pessoas e ajuda a garantir que não se chegará aí.
Rui Bebiano
Fotografia de domínio públicoPublicado no Diário As Beiras de 15/6/2024