De vez em quando, escutamos conversas, ou lemos textos, onde encontramos lamentos sobre a «falta de liberdade» determinada pela parafernália eletrónica, ao nível das tecnologias da comunicação e das suas aplicações, que chegou para ficar e se apoderou das nossas vidas. Se é verdade que a quantidade crescente de dispositivos, bem como as diferentes práticas de interação que estes permitem, pode determinar graus de dependência e implica um uso do tempo que vamos retirar a outras atividades – como ler em papel ou ir ao cinema e ao teatro, ou como passear, conviver e trabalhar – também o é que ampliam, muitas vezes bastante, as escolhas, o conhecimento e a interação.
É por isso um completo logro pensar-se ou sugerir-se que no passado, por eles não existirem, «éramos muito mais livres». Este erro, muito comum entre algumas elites, resulta de uma perceção distorcida do conceito de liberdade, e também da sua associação à forma como hoje esta é vivida, contendo alguns perigos. Desde logo, por não ser próprio de cidadãos de escassa literacia, em regra pouco preocupados com o tema, mas antes de pessoas, com educação média ou superior, que têm muita dificuldade em lidar com as transformações associadas a uma mudança dos seus hábitos ou mesmo das suas convicções.
Historicamente, esta resistência não é nova. É impossível, por falta de provas, recuar ao início da escrita, embora se presuma que muitos humanos a tenham recusado. Porém, podemos encontrar testemunhos de visceral rejeição à invenção da imprensa, aos exames anatómicos, à maquinaria industrial, às vacinas, ao telégrafo, à locomotiva, à fotografia, ao telefone, ao cinema, ao automóvel, ao aeroplano, à rádio, à televisão, aos satélites ou, mais recentemente, aos computadores, à Internet, às redes sociais e à inteligência artificial. Em certos casos, os motivos repetiram-se, como aconteceu com quem entendeu que o telefone, e depois a Internet, iriam «fazer com que as pessoas deixem de falar umas com as outras». Sempre sem se considerar que cada salto tecnológico contém vantagens e desvantagens, e salientando a dimensão, por si julgada negativa, da novidade.
Podemos dizer que esta desconfiança, ainda que questionável, é legítima, mas já não devemos ocultar o perigo que transporta consigo de uma idealização do passado. Trata-se de uma tendência, associada à gestão da memória, a individual ou a coletiva, que tem como resultado a consideração, como tendo sido ideal e benévolo, de um tempo no qual, quem o viveu, foi mais ativo, feliz ou confiante. Apaga-se ou recalca-se então, como lembrou o historiador Enzo Traverso, a maior parte do que foi negativo, correu mal ou deixou sinais traumáticos, preferindo-se um embelezamento das «ilhas» nas quais um dia se encontrou um pouco de bem-estar e de felicidade. Deste modo valorizando, tantas vezes, um tempo que foi, na verdade, de dificuldades, opressão e privação da liberdade.
Para quem experimenta esta perspetiva negativa e inibidora – afirmando, por exemplo, que «antigamente se lia muito» e agora, devido à mediação do digital, «ninguém lê nada» – o conhecimento das estatísticas será o antídoto. O facto é que nos últimos anos foi exponenciado o número de pessoas que leem e escrevem regularmente, ainda que muitas o possam fazer de forma certas vezes superficial e fragmentada. Por isso, ao invés de se fazer um elogio nostálgico de um passado imaginado e das condições em que ele foi vivido, importa questionar os atuais processos de leitura e de circulação da informação, sem propagar a falsa ideia de que a tecnologia impõe por si uma ditadura da ignorância. Na verdade, pode ser um instrumento de liberdade. Não depende dela, mas de nós.
Rui Bebiano
Fotografia de Alexander GrayPublicado no Diário As Beiras de 29/6/2024