Americanismo, antiamericanismo e eleições nos EUA

Born in The U.S.A. não é, nem de perto para o meu gosto, a melhor canção de Bruce Springsteen, mas sirvo-me de uma estrofe sua. Nela proclama o músico de New Jersey: «À sombra da penitenciária / Junto às chamas da refinaria / Há dez anos a arder na estrada / Sem lugar para onde ir ou fugir». O registo é habitual numa importante tradição da cultura popular norte-americana que celebra o indivíduo comum, a quem nada é oferecido e que, numa sociedade selvagem, jamais pode dar por seguro o dia de amanhã. Resta-lhe continuar o caminho e a sua luta diária. Muitos rapazes de várias gerações e diferentes continentes (e algumas raparigas, também), cedo conviveram com esta lírica do desespero que, «nascida na América», alimentava um imaginário de aventura, feito de travessias entre lugares inóspitos e conflitos fatais, em busca de um mundo mais justo. 

Foi nesse imaginário que muitos foram beber, ainda que, de início, sem dele terem clara consciência, um certo «americanismo». Traduzido, não necessariamente numa admiração incondicional pelo sistema político dos Estados Unidos ou pela sua sociedade desigual, mas, sem sombra de dúvida, numa enorme atração pela dimensão otimista, utópica, libertária, e também de certo modo cinematográfica, da América que lhes era apresentada. Quando, já adulto, li Pela Estrada Fora, o romance publicado em 1957 por Jack Kerouac, apesar do desencanto face ao quotidiano contraditório da grande nação, nele percorrida de leste a oeste, foi ainda a sua dimensão de esperança, de liberdade e de procura que nele me atraiu, ao ponto de se ter tornado o livro que mais vezes ofereci.

Ao mesmo tempo, temos convivido com a tradição oposta do antiamericanismo, desenvolvida sobretudo dentro do pensamento progressista e de setores da esquerda. Ela parte sempre de um pressuposto negativo, com um lastro histórico que o justifica, mas que se foca apenas no lado negativo. De acordo com uma leitura essencialista, existe uma maldade natural da América, associada a uma relação do seu sistema político e de bom número de práticas sociais com todos os males do capitalismo e a pior violência imperial. Como se, salvo raras situações vinculadas a certas minorias, toda a sociedade, toda a cultura e todo o sistema político norte-americano fossem irredimíveis. Gerou-se, neste contexto, um conjunto de estereótipos e de preconceitos que mina abordagens complexas dos Estados Unidos, do seu povo e da sua relação com o resto do mundo.

Como seria de esperar, esta atitude está já a atingir a candidatura à presidência de Kamala Harris. Esta poderá evitar o que a maioria dos observadores considerava já inevitável: o regresso de Donald Trump à Casa Branca e as suas imediatas ondas de choque, como um insanável conflito de interesses com a União Europeia, a retirada de apoio à luta de do povo ucraniano, o reforço da política dos falcões israelitas em Gaza, brutais medidas anti-imigração e o menosprezo pelas alterações climáticas, além da falência do Estado de direito e da instauração de clivagens sem precedentes dentro da sociedade norte-americana, com forte potencial de violência. Qualquer pessoa de bom senso perceberá isto, por distante que possa estar das escolhas do Partido Democrata e do seu governo. 

No entanto, a situação trouxe de volta a primária melopeia antiamericana, segundo a qual Harris e Trump, são «farinha do mesmo saco». Se passarmos pelas enormidades que pessoas autodefinidas como «progressistas» estão nesta linha a escrever nas redes sociais e em artigos de opinião, observamos o que realmente pensam e do que são capazes na sua cegueira. São, aliás, as mesmas que, sem hesitar, desculpabilizam Putin pelas suas políticas tirânicas e imperiais projetadas sobre a Rússia, a Europa e o Médio Oriente. A verdade é esta: é nulo o seu amor pela democracia, pois, exatamente como acontece com a extrema-direita, ela só serve quando serve as suas certezas. Se, como acaba de escrever no Público a jornalista Teresa de Sousa, «há sinais de esperança vindos do outro lado do Atlântico, mesmo que ainda sejam ténues», nem todos os vêm. De facto, pouco lhes importam. 

Rui Bebiano

Fotografia Reuters
Publicado no Diário As Beiras de 27/7/2024
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