As vidas, as obras e a complexidade de tudo

De tempos a tempos, quando por alguma razão – seja uma polémica, um prémio recebido ou o seu desaparecimento físico – se destacam nos jornais ou nas redes sociais figuras com um recorte público, é fácil surgirem arrebatados testemunhos, sejam os de quem apenas as elogia ou, no lado oposto, aproveita o momento para as denegrir. Umas e outras tendem a desvalorizar a complexidade do humano e o facto, sem exceções, de jamais alguém ter apenas realizado coisas formidáveis ou só cometido erros, oferecido unicamente beleza ou defendido ideias detestáveis. E, todavia, um grande número de pessoas tende a olhar as demais, sobretudo aquelas que se destacam da mediania, apenas sob uma perspetiva unívoca, dividindo-as de forma, singelamente dualista, apenas em indiscutivelmente «boas» e inequivocamente «más». 

É certo e sabido, porém, que foram e são inúmeros os humanos com obra em destaque – romancistas e poetas, políticos e filósofos, artistas e cientistas, académicos e intelectuais, músicos e atores, realizadores e encenadores – que, além de terem vidas complexas, com atividades e criações notáveis, foram também responsáveis, nos seus percursos, por episódios, fases ou escolhas de sinal negativo. Muitos levaram até uma vida dupla, com realizações públicas notáveis, ou mesmo admiráveis, e comportamentos privados que as contradisseram. Em Intelectuais, Paul Johnson reuniu biografias de personalidades ilustres que levaram essa vida completamente contraditória, como Rousseau, Shelley, Marx, Ibsen, Tolstoi, Hemingway, Brecht, Russel ou Sartre.

Não sendo as leituras unívocas uma novidade na apreciação subjetiva de personalidades, inevitáveis quando realizadas por pessoas com dificuldade em compreender a complexidade de tudo, elas confrontam-se hoje com uma tendência, afirmada nos anos mais recentes, designada pelo historiador François Hertog como «presentismo». Trata-se de uma categoria de análise em que o passado perde o interesse e é apagado, enquanto o futuro deixa de suscitar esperança, tornando-se deste modo o presente a instância exclusiva da experiência humana. Valoriza-se assim apenas o mais próximo, que na abordagens de vidas e de obras pode ser extremamente positivo ou totalmente negativo, esquecendo-se tudo o resto, que deixa de importar. Uma escolha cega e limitada que tende a excluir boa parte do património cultural partilhado e até da nossa identidade coletiva e pessoal.

Rui Bebiano

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