O mito das criancinhas e Trump

Ao longo de décadas, um dos mais utilizados mitos usados por governos e partidos de orientação anticomunista foi a divulgação – a par de lendas sobre imaginárias injeções letais atrás da orelha impostas aos idosos – de que sob os regimes controlados pelos comunistas estes, por mera perversão, «comiam criancinhas ao pequeno almoço». A influência do mito foi tão forte e de tal modo transversal que ainda por volta de 1977 estive em debates em aulas onde alunos universitários, meus colegas à época, defendiam a veracidade desta ideia mirabolante.

Existiram alguns fundamentos e algumas razões para a propaganda da extrema-direita elaborar essa acusação, que teve uma dimensão mundial. Recorriam a histórias, bastantes infelizmente verdadeiras, associadas a formas de repressão política e de engenharia social no estalinismo e no maoísmo, bem como à memória das grandes fomes que percorreram a União Soviética (sobretudo a Ucrânia, nos anos 30) e depois a China, suscitando fenómenos de canibalismo entre a população. Esta brutal realidade serviu, a partir de generalizações, a disseminação do referido mito.

Pois esta noite, no debate televisivo entre Kamala Harris e Donald Trump, este argumentou, entre um infindável chorrilho de incríveis mentiras – como aquela dos imigrantes que «comem os cães e os gatos dos americanos» . e completas deturpações, que a candidata democrata não só defendia a prática do aborto durante o nono mês de gravidez, como se preparava «para matar crianças depois do nascimento». O maior absurdo não está, porém, nessa enormidade, mas no facto de milhões de norte-americanos acreditarem plenamente nela.

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