O beijo na face como pecado venial 

Pertenço à geração que recuperou, naturalizou e tomou como sua a prática convivial do beijo na face, fazendo dela uma forma habitual e partilhada de saudação ou uma expressão de amizade. Apesar de, devido aos interditos impostos por um padrão de masculinidade, dominante no ocidente, fora da família ele se mantivesse muito menos comum entre os homens, a partir dos anos sessenta do século XX passou a representar uma conquista no processo em aberto de aproximação entre corpos que anteriormente pouco se tocavam em público ou o faziam de uma forma por regra cerimonial. Associado à nova cultura urbana e libertária triunfante no pós-Segunda Guerra Mundial, o beijo na face, como também o uso mais público daquele dado na boca, transformou-se num emblema de informalidade democrática.

Como saudação progressivamente generalizada, ele deixou o formal aperto de mão para o relacionamento entre pessoas separadas no plano social ou geracional. Sobretudo entre os jovens e as elites cultas, depois também entre a classe média, tornou-se até algo extravagante, ou um sinal de propositada distância, o cumprimento entre homens e mulheres que não se viam há muito, ou mesmo que acabavam de se conhecer, que não passasse por ele, algumas vezes acompanhado de um rápido e caloroso toque no ombro ou no braço. De início na Europa e nas Américas, depois também em outros lugares, inúmeras pessoas passaram, por essa altura, a usá-lo com frequência e de forma natural e fraterna. Porém, uma vaga de moralismo levou recentemente a que em alguns ambientes a essa prática tenha sido associado um fator de incompreensão e de constrangimento.

Importa recuar no tempo, pois o beijo tem também uma história. Num livro sobre o seu trajeto e afirmação na cultura popular, o antropólogo e professor de semiologia Marcel Danesi fala-nos dele, incluindo as suas variantes associadas ao erotismo e à sexualidade, como práticas tão naturais e persistentes, ao longo dos séculos e em culturas muito diversas, que raramente precisaram ser justificadas. O percurso ter-se-á iniciado entre as espécies humanoides; mais tarde, era já muito comum em civilizações que o uso da escrita e de iconografia nos permite hoje conhecer razoavelmente. Assim acontecia, por exemplo, na Suméria e no Antigo Egito, ou na Índia do tempo dos Vedas. Na Antiguidade clássica, o beijo nos lábios ou na face era já muitíssimo comum entre gregos e romanos, usado como sinal de deferência, de afeto ou mesmo, após as batalhas, como saudação entre guerreiros. Largamente praticado na Europa na época medieval, foi no contexto do movimento romântico, que, a par da amizade que estabelecia ou do instrumento de desejo que representava, passou a ser idealizado como expressão objetiva de amor ou de devoção pessoal, tomando um sentido simbólico tão intenso que sobreviveu à influência do rígido moralismo vitoriano. 

Lembra ainda Danesi que representações tão diversas como as que se serviram do beijo entre Romeu e Julieta, ou entre Guinevere e Lancelot, ou daquele trocado entre um marinheiro e uma enfermeira, encenado e captado pelo fotógrafo Alfred Eisenstaedt, em 1945, na baixa de Manhattan, e depois publicado pela revista Life, pontuaram um trajeto longo e constante. Foi, contudo, de facto, durante os «longos anos sessenta» – período de duas décadas que se estendeu sensivelmente entre os anos cinquenta e setenta – que em boa parte do planeta se disseminou na vida quotidiana como uma aproximação livre entre homens e mulheres. Aproximação que não se confinava a uma relação amorosa, traduzindo ao mesmo tempo um cumprimento e cumplicidade social e cultural. E assim chegou até nós, assimilado como gesto ao mesmo tempo relevante e trivial do quotidiano.

Nos últimos tempos, porém, no contexto do justo combate contra o assédio sexual sobre as mulheres, tem defrontado uma interpretação perversa. O assédio traduz-se, como se sabe, em comportamentos indesejados, ofensivos e humilhantes, ou em atos de violência psicológica e física, praticados de um modo reiterado e sem consentimento de ambas as partes. Associado a um ideal misógino de masculinidade, hoje criminalizado, ele deve ser combatido e eliminado. Mas não pode acontecer que práticas como a troca natural do beijo no rosto ou a do breve toque no braço com ele sejam confundidas. Há já muito tempo que, nesta direção, uma atitude paranoica e coerciva tem lugar, por exemplo, nas universidades norte-americanas. Tão extrema que levou a uma tentativa de banimento público da fotografia de Eisenstaedt. Ela chegou já à Europa, envenenando de forma intolerável, como um pecado venial, um dos mais humanos e belos modos de sociabilidade.

Rui Bebiano

Versão ampliada de artigo publicado no Diário As Beiras de 21/9/2024
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