Apesar dos seus riscos e defeitos, uso com regularidade as redes sociais. São múltiplos os motivos: manter um contacto regular com algumas pessoas, divulgar ou saber de iniciativas, difundir artigos de opinião, saber de livros, séries e filmes, chegar na hora a notícias importantes, conhecer mais e de uma forma mais plural, e sobretudo tomar o pulso ao mundo em perpétua e rápida mudança. Elas podem ainda aproximar-nos de universos novos ou que geralmente desconhecemos. Por isso, digo a quem não as utiliza ou as abandonou, devido sobretudo ao excessivo ruído e à ocasional violência, que fazem mal e talvez delas não se tenham servido de um modo eficaz e necessariamente seletivo.
Foi num desses momentos de viagem virtual pelo estranho que, há dias, entrei num espaço onde se documentava o Programa Apolo, o projeto da NASA destinado, entre 1960 e 1972, a levar humanos à Lua. Em alguns artigos desci aos comentários, às centenas, e reparei em como na maioria se sucediam juízos que rejeitavam liminarmente as conquistas da exploração do espaço, neles classificadas como «um logro que nos foi imposto», qualificando as imagens da primeira alunagem e de outras operações como manipulação. Sendo certo que esta rejeição é tão antiga quanto os acontecimentos que questiona, por largas décadas ficou confinada a uma minoria de fanáticos e de ignorantes. Agora, porém, parece ter-se tornado comum entre uma significativa fatia de cidadãos.
Na raiz desta rejeição estão formas do negacionismo e teorias da conspiração defendidas, um pouco por todo o mundo, primeiramente por extremistas religiosos e por regimes que estes têm podido impor e controlar, mas que são atualmente recuperadas também pela propaganda da extrema-direita e do populismo. Esta aposta em espalhar entre o maior volume de pessoas possível a suspeita de que elas são ludibriadas pelos regimes democráticos, pelas forças e políticos que os sustentam, e mesmo por boa parte da comunidade científica e da tradição de conhecimento acumulado que esta incorpora.
O extremismo religioso é o mais antigo vetor deste embuste manipulador, disseminado e em nome da fé numa verdade revelada, do qual constituem particular testemunho as modalidades históricas do cristianismo e do islamismo, interpretadas ao longo dos séculos como alicerces de culturas e de poderes. Kant, Herder, Feuerbach ou Marx falavam mesmo das religiões como um «ópio do povo». Já o negacionismo, termo cunhado pelo historiador Henry Rousso, define-se pela rejeição de conceitos básicos, incontestáveis e apoiados em consenso científico, bem como de factos provados, em favor de invenções e de conceções pseudocientíficas que servem de munição a determinados absurdos. São exemplos bem conhecidos a negação do Holocausto, a obtusa noção de que a Terra é plana, a rejeição das alterações climáticas ou a invalidação do papel das vacinas.
Os dois fatores confluem nas múltiplas teorias da conspiração, caraterizadas, como refere o politólogo Michael Barkun, por constituírem hipóteses especulativas e não provadas, algumas até do foro psicopatológico, transformadas por alguma propaganda em crenças populares. Sugerem a existência, por detrás das evidências, de forças ocultas que tudo condicionam e manipulam, enganando o cidadão comum no contexto de uma «realidade inventada». Foi o que ocorreu, recentemente, com a epidemia da COVID-19, encarada por muitos teóricos da conspiração como uma impostura gerada por forças obscuras. Ou o que tem acontecido com interpretações dos fluxos migratórios vindos de fora da Europa, apresentados como uma operação de cerco da sua identidade cultural.
Este vórtice de comprovadas mentiras e mirabolantes delírios funda-se na coincidência de três fatores. O primeiro é a ignorância de história, cada vez menos presente ou simplificada nos currículos escolares, que dá facilmente lugar a invenções do passado. O segundo é a cumplicidade de uma comunicação social que maioritariamente valoriza o sensacionalismo em detrimento da profundidade, cedendo voz a essas construções. Por fim, o terceiro, absolutamente decisivo e o mais perigoso, é a sua utilização por figuras e movimentos de orientação retrógrada e autoritária, que se servem delas para instalar medos e crenças capazes de referendar, na rua ou em eleições, a redução dos direitos e o assalto à democracia.
Rui Bebiano
Fotografia de Igor DemidovPublicado no Diário As Beiras de 5/10/2024