Ainda a necessidade e o perigo das vanguardas

A palavra vanguarda é usada no vocabulário comum como metáfora de origem militar que alude ao destacamento especial dos exércitos destinado, durante as campanhas, a seguir muito à sua frente, tendo por objetivo reconhecer os caminhos que deveriam percorrer, observar melhor as forças do inimigo e realizar pequenas incursões destinadas a feri-lo ou a testá-lo. Atualmente a designação é associada a indivíduos, a experiências e a movimentos que, nos planos vivencial, estético, filosófico ou político, se mostram bem à frente das sociedades de onde emergem, propondo, ensaiando e materializando vias e dimensões caraterizadas pela ousadia, pela raridade e pelo pioneirismo.

Uma observação atenta da história humana mostra como em muitos momentos estes setores avançados foram imprescindíveis para combater a estagnação e promover inovações ou alterações profundas, propondo vias anteriormente inexistentes e associando-as a lógicas de mudança de grande impacto. Aplicada a estes segmentos, todavia, a designação apenas começou a ser usada a partir dos inícios do século XX, associada agora a movimentos que cumpriam essa função criadora. Com a singularidade de quem os integrava ter agora consciência da forma como a sua iniciativa impelia novas dinâmicas históricas, conferindo a quem as procurava impor, como anotou Renato Poggioli na sua Teoria da Arte de Vanguarda, de 1962, um importante papel.

Apenas alguns exemplos. Vanguardas foram o futurismo, o expressionismo, o construtivismo, o «dada», o surrealismo ou a «pop art», no campo da criação artística e literária. Foram-no também, no domínio da teoria e da ação política, o socialismo utópico, o marxismo e o bolchevismo, apostados em criar, como lhe chamou Sousa Dias, uma poderosa «política do impossível». Foram-no ainda o fascismo original, o estalinismo e o maoismo, se bem que estes num sentido particularmente perverso. Foi-o de igual modo, no campo da filosofia e do pensamento social, a afirmação da teoria crítica, as modalidades do existencialismo e as propostas de reapreciação do real do estruturalismo. 

Todas estas vanguardas, apesar das suas distintas formas, tiveram a mesma pretensão: reinterpretar ou reformar o mundo de onde emergiam a partir de uma refundação das formas de representar a realidade e de sobre esta atuar. Procuraram-no a partir de cinco vetores. O primeiro consistiu em partirem sempre da ação de minorias ativas, combativas e conscientes do risco que assumiam, bem como da necessidade dos passos que davam. Como segundo vetor, tiveram uma dimensão experimental, propondo sempre fazer aquilo que jamais havia sido feito. Em terceiro lugar, contiveram uma dimensão utópica, apontando para um futuro até ali ainda não pensado. Em quarto, defenderam um processo brusco de mudança, valorizando o papel da revolta e da revolução no derrube da ordem estabelecida. Por fim, como quinto vetor, impuseram o que já alguém chamou «uma poética da tábua rasa», definindo uma posição iconoclasta voltada para a criação de um novo mundo, porventura de uma nova humanidade.

Esta dimensão criadora das vanguardas não pode, todavia, deixar-nos esquecer as suas perversões. Daniel Bell observou a forma como a sociedade neoliberal recuperou muitas das suas formas, usando a capacidade que detêm de produzir o novo e de fascinar as pessoas comuns em favor da desigualdade social e das dinâmicas do capitalismo, transformando a novidade em opressão. Porém, o seu maior perigo – e dele a história dos últimos cem anos tem-nos dado suficientes exemplos, alguns com um aterrador rosto de violência – reside no facto de muitos dos seus protagonistas assumirem uma perspetiva sectária e messiânica, procurando impor pela coação e pelo domínio a sua interpretação unívoca do mundo à volta. De facto, trata-se de pseudovanguardas, causando, paradoxalmente em nome do novo, um recuo do progresso humano.

Algumas das propostas e tendências contemporâneas que replicam o desejo radical de transformação por saltos análogo ao de algumas antigas vanguardas – como os nichos tribalistas que nas instâncias da política autoritária e em instituições vocacionadas para o conhecimento procuram regular o comportamento humano, impondo retrocessos e tolhendo a liberdade – contêm o embrião desse monstro. Partindo de propostas sedutoras ou defendendo objetivos que parecem justos, com uma aptidão sôfrega para agitar bandeiras e «seguir à frente» de megafone em punho que retoma velhas receitas, se não forem sujeitas à crítica e à vigilância democrática podem converter-se em armas da tirania. Algumas já o fazem. 

Rui Bebiano

Fotografia de Alexander Rodschenko (Lilya Brick, 1924)
Publicado no Diário As Beiras de 19/10/2024
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