Há cerca de vinte anos, quando passei a ter nas aulas muitos estudantes brasileiros, reparei no grande desconforto que sentiam de cada vez que me referia aos Estados Unidos apenas como «a América». É um velho hábito europeu que ecoa um costume dos norte-americanos, transformando a palavra em conceito gerador de uma identidade transversal a ambos os lados do Atlântico. Como surgiu referido, em sentidos diversos vinculados a esse referente único, em Mon oncle d’Amérique, o filme de Alain Resnais, na canção pessimista This is not America, de David Bowie e Pat Metheny, ou sobretudo em God Bless America, o conhecido hino composto em 1918 por Irving Berlin, usado pela propaganda patriótica americana durante e após a Segunda Guerra Mundial.
O teor abrangente do conceito está em boa parte associado à atração cultural do «American Dream». Comum a gerações, dentro e fora da América este «Sonho Americano» alimentou e continua a alimentar imaginários. Funda-se no registo otimista, libertário e emancipador da Declaração de Independência assinada em 1776 na cidade de Filadélfia, tendo há quase cem anos sido definido pelo historiador James Truslow Adams como «uma variedade de ideais de liberdade que inclui uma possibilidade de sucesso e prosperidade, e também uma maior mobilidade social, alcançada através de trabalho duro dentro de uma sociedade sem obstáculos». Ou seja, a proclamação, como hipótese materializável, de uma utopia de prosperidade sedutora e acessível a todas as pessoas.
Ela ancora numa imparável dinâmica de crescimento, projetada no século XIX e alimentada, nos últimos cem anos e sobretudo a partir da década de 1950, com a afirmação de grandes transformações de âmbito económico, social, político e cultural. Estas ligaram-se à expansão dinâmica do capitalismo e da livre-iniciativa, bem como ao crescimento acelerado da classe média. Mas também à expansão do multiculturalismo original, à afirmação de movimentos sociais e políticos de teor libertário e emancipatório, a mudanças democráticas no domínio da moda e dos comportamentos, a grandes inovações no campo do cinema, da televisão, da música, do espetáculo, da literatura e das artes, que configuraram uma realidade atraente e avessa ao imobilismo, capaz de ajudar a alimentar uma ideia de inigualável e positiva grandeza.
Todavia, este universo aliciante possui também um grande número de caraterísticas negativas. Desde logo a dinâmica imperialista, cedo denunciada por Lenine, que sustentou o crescimento económico, mas também o aprofundamento de desequilíbrios internos – associados, por exemplo, à desigualdade social e ao racismo – e ainda uma política externa agressiva, por vezes abertamente belicista, repetidamente favorecedora de tiranias e de desequilíbrios entre as nações. Percorrendo a 1ª série da revista O Tempo e o Modo, publicada entre 1963 e 1969, encontramos largas dezenas de artigos onde se mostra o dilema que cruzou gerações de leitores progressistas, situados entre a atração pela dimensão positiva da América e a rejeição do seu lado sombrio e opressor.
De forma unilateral, um segmento minoritário da esquerda tem, entretanto, feito do impacto deste segundo aspeto o motor de um antiamericanismo visceral e cego, que tende a ignorar a complexidade da sociedade norte-americana e as dinâmicas do seu campo progressista. Mostra também uma chocante incapacidade para observar de forma objetiva e atualizada o mundo de hoje, desdenhando a forma como se move o mapa político global. É assim que, com insistência, ele tem demonstrado simpatia, ou pelo menos compreensão, por governos autoritários e não democráticos, como os da Rússia, da China, da Síria, do Irão, da Bielorrússia, da Coreia do Norte ou da Venezuela, entre outros, apenas porque enfrentam a América e a União Europeia, considerada sua cúmplice.
Um dos sinais desta cegueira traduz-se na forma como o feroz combate que hoje divide a América é observado com desdém, desconsiderando, no caso das eleições da próxima terça-feira, 5 de novembro, o impacto para o povo americano, mas também para a Europa democrática e para o mundo, das propostas antagónicas de Donald Trump e de Kamala Harris. Se a vitória desta, não resolvendo de imediato desequilíbrios em cima da mesa – como a situação na Ucrânia e em Gaza, o caos climático ou a ascensão dos populismos – deixará em aberto caminhos de diálogo, o triunfo de Trump causará um cataclismo político que apenas beneficiará a Rússia e a China, os novos imperialismos emergentes. Por isso, não tomar partido neste combate é ser conivente com o protofascista e seus aliados.
Rui Bebiano
Fotografia UnsplashPublicado no Diário As Beiras de 2/11/2024