O «espírito do tempo» e a utopia contra o pessimismo

Na passagem de cada ano para o seguinte tornou-se um hábito realizar balanços do que finda e anunciar planos, desejos ou previsões para o que vai começar. Neles se misturam dados objetivos, impressões ou simples anseios, sejam estes coletivos ou mais pessoais, em registos que se distinguem consoante quem os enuncia e partilha, conforme a sociedade onde vive, ou, de uma forma decisiva, de acordo com o «espírito do tempo» em que os formula. Sirvo-me aqui dessa expressão, surgida com Herder e os românticos alemães, e particularmente pensada e divulgada por Hegel na Fenomenologia do Espírito, de 1807, usada para identificar e dar consistência ao clima político, sociológico e cultural que, em escala ampla e dinâmica, domina e determina uma dada época. 

O atual «espírito do tempo» possui caraterísticas particulares. Bem diferentes daquelas que pautaram as décadas entre o pós-Segunda Guerra Mundial e os anos setenta, caraterizados, nos países industrializados e suas periferias, pelo crescimento económico, a expansão da classe média e uma perspetiva otimista do futuro. Diversas também das afirmadas na viragem do século passado para este, quando a vertigem neoliberal voltou a ampliar os quadros de desigualdade e a globalização da economia e da informação tomaram conta do mundo, apesar de tudo, ainda dentro de um quadro democrático. Este que nos cabe, porém, define-se de um modo outro, ao mesmo tempo perigoso, dramático e pessimista. Carateriza-o, num ambiente de descrença no futuro e de manipulação da informação e do conhecimento imposto no clima selvagem das redes sociais, a evaporação das ideologias e a emergência de projetos de teor populista e autoritário.

Este autoritarismo afirma-se, no mundo contemporâneo, com líderes e movimentos de diferentes que procurarem consolidar um poder centralizado, enquanto prometem soluções simplistas para problemas complexos. A sua iniciativa tende a criar ou a estimular divisões aparentemente insanáveis, minando a confiança nas instituições democráticas e pondo em causa a estabilidade política e social de um número crescente de países. Ao mesmo tempo, fazem recuar direitos estabelecidos e restringem as liberdades individuais. Neste contexto, o uso de discursos discriminatórios e ações repressivas minam a participação cívica, gerando polarização e injustiça social, enquanto o controlo e a manipulação dos meios de comunicação espalham o pessimismo, a mentira e uma efetiva ignorância do mundo e dos seus problemas.

Neste negro quadro, da natureza distópica, o papel das utopias permanece essencial para gerar um antídoto. Na linguagem dominante entre as pessoas comuns, mas também na comunicação social e, por paradoxal que tal possa parecer, também nos partidos políticos, o conceito de utopia tende hoje a ser desvalorizado, ou mesmo rejeitado. Em alguns discursos, é equiparado a algo inútil ou a um mero devaneio próprio de pessoas ingénuas ou de tolos, perante o qual muitos políticos e dirigentes, que «devem ser» essencialmente pragmáticos, erguem uma barragem de cinismo. civilização ideal, fantástica, imaginária. É certo que a utopia tem sempre, como componente, uma dimensão de fantasia, de ilusão ou de sonho, mas é este que «comanda a vida», como escreveu o poeta António Gedeão.

Ao longo dos últimos dois séculos, sucessivos pensadores dos domínios da história, da filosofia e da ciência política têm destacado esta necessidade da utopia criadora. Isto é, da capacidade idealizar o novo a partir do que, num dado momento, pode parecer irrealizável, produzindo uma «política do impossível» – a expressão é de Sousa Dias no livro A Grandeza de Marx – capaz de mostrar que, para escapar de uma vida sem horizontes e de sociedades bloqueadas, é preciso imaginar aquilo que de singular e positivo pode ser construído mais além. Por este motivo, o que, neste final de dezembro, de melhor posso desejar a amigos e leitores, é um novo ano pautado pelo otimismo e pela utopia. Ainda que contra o atual «espírito do tempo».

Rui Bebiano

Gravura de Karina Puente inspirada em As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino
Publicado no Diário As Beiras de 28/12/2024
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