Maldição e necessidade de opinar de forma pública

Este artigo contém uma vertente autobiográfica. Tem como tema a experiência da crónica como género literário, com o qual, na páginas deste jornal e em outros espaços públicos, regularmente evoco determinados temas ou discuto problemas da atualidade. Como forma necessariamente abreviada e efémera de comunicação, a crónica é geralmente uma narração curta, com um objetivo pré-determinado da parte de quem a escreve, ligando-se sempre à realidade do quotidiano e apresentando uma visão tão informada quanto pessoal e subjetiva dos assuntos que aborda. Atravessou séculos como simples relato pessoal de acontecimentos dispostos em ordem cronológica, mas no século XIX, com o progresso das ideias democráticas e a expansão da imprensa, evoluiu no registo, que passou do meramente descritivo e informativo para o opinativo e crítico, entre nós já usado n’As Farpas de Eça e de Ramalho.

Esta dimensão dinâmica e individual transformou-a num fator essencial na divulgação de pontos de vista e na construção de uma opinião pública tendencialmente livre e plural. Este processo não se desenvolveu, todavia, de forma caótica e sem um propósito, associando-se ao que o historiador Tony Judt, num estudo sobre os intelectuais públicos franceses Léon Blum, Albert Camus e Raymond Aron – que, não por acaso, dedicaram boa parte da sua atividade à comunicação através da crónica – chamou «o peso da responsabilidade», assumido por se saber que essa forma de escrita compromete civicamente o seu autor e pode ter um importante eco social. Ao mesmo tempo, ela desenvolve-se através de um enriquecedor cruzamento de disciplinas, onde jornalismo, política, história, filosofia, literatura e outros saberes têm lugar.

Comecei a escrever crónicas públicas em 1970, ainda adolescente, num pequeno jornal regional, e fi-lo quase ininterruptamente durante todos estes anos, num processo que, tendo inevitavelmente passado por diversas e distintas fases, manteve também traços de continuidade. Identifico-os, correndo o risco de expor alguma imodéstia, com a independência do pensamento, a defesa dos ideais democráticos, a vontade de divulgar conhecimento, a procura de escapar aos modos do pensamento dominante e o cuidado com o estilo. No entanto, como ocorre com todo o autor de crónicas que procura ser justo e autónomo, sempre deparei com o contraditório ou a incompreensão, o que é, obviamente, natural e inevitável em democracia. Num tempo como este que vivemos, quando qualquer pessoa pode usar um teclado para questionar, ainda que sem sustentação, o que outros dizem ou escrevem, isto pode tornar-se muito problemático. 

A exposição pública de quem escreve crónicas de opinião faz parte do seu compromisso, aplicando-se aqui o conhecido provérbio «quem anda à chuva molha-se». Todavia, aquela que é a salutar crítica ou legítima discordância pouco ou nada tem a ver com o que, num impulso sem argumento, muitas vezes de um modo cobardemente anónimo e como caricatura, se mostra nas redes sociais e nos comentários em linha dos jornais. Eis alguns exemplos do que neste domínio tenho recebido nos últimos anos, por vezes em registo de impertinência ou mesmo de ódio: alusões ao facto de não falar disto ou daquilo, como se a breve e fugaz crónica fosse trabalho exaustivo sobre certo tema; redução da apreciação ao pequeno detalhe, ignorando que este se insere num todo; ou mesmo conselhos paternalistas ou ameaçadores sobre o que o autor deve ou não pensar e dizer.

Nada disto é estranho a quem publica crónicas, e se quem as escreve é ao mesmo tempo figura pública e não se cinge a temas inócuos, recebe juízos desta natureza em grande quantidade. Perante eles, pouco ou nada há a responder, quanto mais não seja por motivos de tempo e de sanidade mental. Perguntar-se-á então porque existe quem continue a praticar o género, submetendo-se a esse cerco. Cada autor terá as suas razões e eu apenas sei responder por mim: porque não vejo a prática da crónica como maldição a precisar de esconjuro, mas como necessidade imposta, contra o silêncio e o medo, pelo meu modo de entender a cidadania, a liberdade de pensamento e a própria vida. Uma escolha que, como escreveu Camus no romance póstumo A Morte Feliz – cito de novo o meu mestre para estas lides – «apenas se concebe entre quem vive em estado de esperança». 

Rui Bebiano

Fotografia de Roman Odintsov
Publicado no Diário As Beiras de 10/1/2025

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