Isto não é a América

Existe uma tendência, alojada num setor do complexo campo da esquerda – ao qual pertenço, «apesar de mim, apesar dela», como sobre esta pertença escreveu Camus –, pautada por uma rejeição cultural, política e vivencial de quase tudo o que chega dos Estados Unidos. Um antiamericanismo visceral e persistente que possui uma razão de ser. Esta começa pela ambição imperial dos EUA, responsável por uma política externa tantas vezes agressiva, violadora dos direitos dos povos e apoiante de ditaduras, e termina na articulação dessa avidez com formas selvagens de liberalismo económico. Ajustando ao tempo o pensamento de Marx, Lenine, que por vezes acertava nas observações, classificou mesmo o imperialismo norte-americano como a «etapa superior do capitalismo», fundada no poderio do setor financeiro.

Esse sentimento de rejeição apoia-se também em traços duradouros da sociedade americana, pautada entre amplos setores pela sacralização do dinheiro, pela normalização do egoísmo e do consumismo, pelo racismo, a xenofobia e o fanatismo religioso, bem como por uma ignorância abissal do mundo e da história. Com este panorama deve ainda relacionar-se o pepel dos EUA na Guerra Fria, marcado pela agressividade mútua contra a União Soviética e o seu espaço de influência, mas também pelo combate contra forças democráticas e correntes emancipalistas, tratadas como inimigas. A persistência desse forte sentimento de repúdio tem também alimentado uma visão distorcida e perigosa do mundo atual, pautando-a pelo menosprezo de outros imperialismos agressivos, pela desculpabilização de regimes tirânicos e pelo desdém da União Europeia.

Apesar disso, muito de positivo e de exemplar tem também acontecido na América. A partir do caráter otimista e democrático da Declaração de Independência de 1776, desenvolveu-se uma sociedade dinâmica que se tornou, para pessoas de todos os continentes, um lugar de refúgio, uma utopia de felicidade e um polo de atração unido a uma dinâmica de crescimento, projetada no século XIX e alimentada, nos últimos cem anos, apesar da manutenção de fortes desigualdades, pelo grande crescimento da classe média. Ligado igualmente à afirmação da diversidade cultural, de movimentos sociais e políticos de teor libertário e emancipatório, de mudanças democráticas no domínio da vida quotidiana, de enormes inovações no domínio das tecnologias, das ciências, do pensamento crítico, das letras, das artes e dos costumes. Fazendo da América também um lugar de liberdade, de progresso e de oportunidades.

Esta dimensão plural, criadora e positiva da América tende agora a ser sepultada pela mais negra e negativa. Precedida nos últimos anos por uma forte ascensão do populismo, do obscurantismo e de uma política fundada na exacerbação dos conflitos, na impiedade e no ódio, bem como na destruição do Estado social, das políticas ambientais e do sistema judicial, vivemos uma situação que está a fazer sobressair o seu pior. O governo de Trump e de Musk, a sua sombra do lado dos senhores do dinheiro e das máquinas aplicadas ao controlo das consciências, estão a impor esse caminho, com fortes consequências para os norte-americanos e para os seus vizinhos, para a Europa e para o mundo. Promovendo uma substituição do equilíbrio social e político, e a diversidade cultural, por modelos de governação assentes no autoritarismo e em visões fictícias e retrógradas do mundo.

O título desta crónica traduz This is not America, uma canção de David Bowie e Pat Metheny. Nela se lembra: «Houve um tempo / O de um vento que soprava jovem / Porque este podia ser o maior dos céus / E eu podia imaginar qualquer ideia». Uso-a aqui, não como lamento ou expressão de nostalgia, mas como hino de combate, determinação e esperança. Só atitudes desta natureza poderão impedir a catástrofe, que será sempre global. Elas deverão ser assumidas, em primeiro lugar, pelos norte-americanos que as possam merecer.

Rui Bebiano

Fotografia de Taylor Flowe
Publicado no Diário As Beiras de 8/2/2025
    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião.