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O título desta crónica é plagiado. Em novembro, quando do 35º aniversário do fim da barreira física e política que entre 1961 e 1989 separou rigidamente os dois lados de Berlim, foi com ele que Timothy Snyder intitulou uma reflexão que publicou no seu blogue «Thinking about…» sobre a poderosa vertente da nossa história recente que tem aquele episódio como vértice. Ali escreveu o historiador de Yale: «Sem dúvida estão a pensar: ‘ele quer dizer isto metaforicamente; quer dizer que permanece alguma barreira mental entre o Leste e o Oeste’ (…). Não, quero dizer que muito literalmente o Muro de Berlim não caiu. Não caiu hoje, ou há trinta e cinco anos. Nunca caiu. A ‘queda do Muro de Berlim’ é um artifício literário, não é um facto histórico.»
O que Snyder queria dizer é que o Muro, como barreira física mortal construída pelas autoridades da RDA «para proteger o socialismo», que atravessava a atual capital alemã, não «caiu» por si, como um edifício degradado que acaba por ruir, mas desapareceu pelo efeito das fortes dinâmicas de contestação que em 1989 ocorreram na União Soviética e em todo o leste europeu. Além disso, esse desaparecimento não aconteceu naturalmente, resultando antes da intervenção das enormes multidões de cidadãos, desejosos de pôr fim aos limites à liberdade de circulação e de expressão impostos por regimes autoritários que, erguidos em nome de um ideal de progresso e de justiça social, se opunham agora a estes, impondo uma estagnação que os novos ventos estavam a contrariar.
A verdade, porém, é que algo ficou por «cair». Desde logo, a clivagem global entre blocos, instalada, no contexto da Guerra Fria aberta no pós-Segunda Guerra Mundial, entre o que convencionou designar-se Leste e Ocidente, e da qual a situação de Berlim era talvez o símbolo maior. Associada a essa clivagem, a instalação de fortes hábitos de desconfiança e temor entre povos e nações. Apesar da emergência da União Europeia e do seu alargamento a Estados anteriormente protegidos por Moscovo, na realidade depois de 1989 eles jamais desapareceram, estando até, no atual contexto da política internacional e dos seus desequilíbrios, e ainda que com outros rostos, a reemergir.
Desde logo no âmbito de uma dupla dinâmica. De um lado, a associada à falsa ideia de que com o derrube do Muro teria chegado «o fim do comunismo», afirmando-se uma Europa para sempre limpa de regimes autoritários. Como se o ideal humano e trans-histórico de igualdade e justiça, ainda que muitas vezes maculado por brutais perversões, se tivesse evaporado para todo o sempre, num quadro de vitória do modelo neoliberal. Ou como se a existência de democracias fundadas na solidariedade, na liberdade e no respeito pelo outro fosse um dado adquirido, imune ao assalto organizado dos seus inimigos.
Do outro lado, a dinâmica articulada com duas tendências perversas que têm vindo a desenvolver-se nos últimos quinze anos. A primeira assenta na ideia segundo a qual um regime despótico, ultranacionalista, imperial e corrupto, como o dirigido por Vladimir Putin, poder funcionar, para alguns setores minoritários da esquerda ortodoxa, saudosos da velha União Soviética, como poderoso obstáculo à expansão do imperialismo norte-americano e à afirmação autónoma da União Europeia. A segunda tendência baseia-se na crença comum, por parte de regimes e correntes da extrema-direita populista, de que existe um «mal», materializado nos fundamentos da democracia, da igualdade e dos direitos humanos, que procuram combater e aniquilar.
Ambas estas tendências observam o mundo atual como se os ódios, os medos e os combates sem quartel da Guerra Fria original tivessem apenas mudado de protagonistas, permanecendo associados a um interminável confronto de opostos. Como se a segunda metade do século XX, uma época que foi basicamente de edificação de equilíbrios e de afirmação da diferença, para nada tivesse servido. Como se o Muro de Berlim, ainda que agora apenas figuradamente, permanecesse de pé.
Rui Bebiano
Fotografia de Igor DemidovPublicado no Diário As Beiras de 22/2/2025