A alternativa ao wokismo não é o antiwokismo

É do senso comum que devemos avaliar o efeito das palavras, mas no mundo que hoje habitamos este é um esforço prioritário. Muitas delas, além de convocarem, como sempre, significados complexos e contraditórios, tendem agora a ver rapidamente alterados os sentidos estáveis que por largas décadas respeitaram. Isto acontece também com aquelas que envolvem a afirmação ou a contestação do fenómeno woke. Como sabe quem não anda distraído, o conceito associa-se a práticas reivindicativas que, ao ultrapassarem as formas de protesto social tradicionais – ou mesmo institucionalizadas, como os partidos e os sindicatos – enfrentam de modo vigoroso o racismo, a discriminação de género e outros fatores de injustiça e de desigualdade, defendendo uma tomada de consciência ativa e uma intervenção combativa que lhes faça frente. 

A sua afirmação é vital para a renovação da democracia e para a conquista de uma justiça social plena. Porém, as formas que por vezes toma – o sufixo «ismo», adicionado para nomear certas práticas woke, tende a aproximá-las da ideologia – são muitas vezes objeto de questionamento. Este toma dois sentidos opostos. O primeiro, progressista e aberto, põe em causa a forma como, entre alguns setores, um wokismo radical se ergue de forma autoritária, tribalista e unívoca, como «religião sem perdão», que para o filósofo J.-F. Braunstein procura impor perspetivas rígidas e sectárias do combate social. Não o fazendo a partir dos movimentos de massas, mas apoiando-se na iniciativa de grupos hiperativos, sediados em nichos sociais, embora com alguma «boa imprensa», que retiram à corrente a dimensão plural e aberta, cancelando vozes que lhes contrariem os processos, isolando-se e dando argumentos aos inimigos das causas que crê defender.

O segundo sentido é retrógrado e agressivo, afirmando-se como um antiwokismo visceral. Associa-se à extrema-direita e às correntes populistas, sendo particularmente visível e poderoso nos Estados Unidos, no contexto da afirmação autoritária da nova administração Trump-Musk. Serve-se das grandes e justas bandeiras dos combates woke – como a inclusão das minorias, o feminismo, o antirracismo, as causas LGBTQIA+ e a emergência climática – para os apontar como apenas da iniciativa de «bandos de lunáticos» convertidos em «inimigos da América». A política de cancelamento praticada pelo wokismo é aqui completamente invertida e vai bastante mais longe, traduzindo-se na exclusão de empregos públicos, na redução de apoios vitais do Estado, na expulsão de residentes e até de turistas, no combate cultural contra os valores da democracia e do multiculturalismo, e na regressão de conquistas sociais que custaram tantos sacrifícios e demoraram décadas a obter.

Exemplo desta orientação é dado por uma notícia do New York Times onde consta uma lista de quase 200 palavras que, nos EUA, passaram a ser proibidas em documentos oficiais, declarações de titulares de cargos públicos e até e-mails de serviços oficiais ou de universidades. Eis algumas: o termo «trans» e a sigla LGBTQ+ figuram na lista, junto com «racismo», «antirracismo», «diversidade», «igualdade», «discriminação», ou as expressões «biologicamente feminino ou masculino», «discurso de ódio», «pessoa que amamenta», «apropriação cultural», entre muitas outras. Celeste Royce, professora de obstetrícia, ginecologia e biologia reprodutiva na Faculdade de Medicina de Harvard, revelou mesmo que de um seu artigo académico foi, entretanto, retirada a palavra… «mulheres». Outras, como «fêmea» e «feminismo», estão também a ser censuradas. 

Esta sanha do antiwokismo de modo algum pode ser vista como um ciclone episódico e desvalorizada. Traduz, de facto, um retrocesso estrutural, fundado na manipulação política da informação e do conhecimento, e apoiado nos setores mais retrógrados e revanchistas da sociedade norte-americana, que vão de grandes oligarcas a fundamentalistas evangélicos, passando por criminosos de delito comum e até doidos varridos, todos apostados em erguer uma América cercada por muros e uma nova ordem política que rejeite a constituição, fundando um «novo» universo distópico do qual estão ausentes a liberdade e a justiça social.  Pior ainda: esta é uma tendência com seguidores e simpatizantes em todo o planeta. Importa combatê-la sem hesitação e por todos os meios disponíveis.

Rui Bebiano

Fotografia Unsplash
Publicado no Diário As Beiras de 22/3/2025
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