Após a publicação, em 2005, do excelente Pós-Guerra. História da Europa desde 1945, Tony Judt transformou-se num dos historiadores do mundo contemporâneo mais conhecidos fora dos meios académicos. Mas o aumento da sua visibilidade e influência foi acompanhada, por parte de alguns sectores, de uma tentativa de descredibilização como «inimigo de Israel», concretizada em declarações de ódio e pequenos gestos de retaliação por parte de organizações sionistas, particularmente de algumas sediadas nos Estados Unidos.
Pode parecer estranho, conhecendo o seu percurso. De ascendência judaica, o sobrenome não engana, viveu parte de uma juventude militante e idealista envolvido na experiência inicial dos kibutzim, tendo trabalhado durante algum tempo, como motorista e tradutor, para as forças armadas de Israel, mas existe uma explicação para o aparente volte-face que determinou a sua lapidação pública. O trabalho como historiador e crítico atento à actualidade mundial, inevitavelmente associado à percepção das mudanças verificadas dentro de um universo que conhecia bem, levou-o a reflectir sobre a história recente de Israel e a escrever alguns artigos sobre a forma como a realidade no interior do seu território, e a sua projecção internacional, mudaram muito desde os tempos pioneiros de David Ben-Gurion e dos activistas do Hashomer Hatzair. Sobre o tema, podemos ler em português o importante posfácio a Pós-Guerra («Da Casa Dos Mortos»), e agora dois artigos editados na compilação O Século XX Esquecido («Vitória Sombria» e «O País Que Não Queria Crescer»). O primeiro apareceu em 2002 na New Republic e foi o último ali publicado antes da retirada compulsiva de Judt da ficha técnica da revista. O segundo saiu em 2006 no diário israelita Ha’aretz.
Correndo o risco de parecer, ou de ser, excessivamente conciso, acredito que o essencial das divergências, e a raiz, aos olhos de alguns, da sua «traição», se pode relacionar com uma atitude (a crítica de uma arrogância belicista que não parou de crescer a partir da Guerra dos Seis Dias) e com uma proposta (a defesa, bastante incomum, de um «Estado binacional») avançadas por Judt.
De facto, não caiu bem entre certos sectores israelitas, e entre muitos judeus da diáspora, o seu entendimento da retumbante vitória na Guerra dos Seis Dias, em 1967, como marco do fim do caminho de um sionismo socialista, igualitário, e de alguma forma tolerante, maioritário ainda entre as comunidades judaicas que pesavam na sociedade israelita da época da independência, em 1948. O episódio terá aberto o caminho ao triunfalismo e à arrogância militarista, em parte associados a uma nova imigração judaica para os territórios conquistados – novos sionistas que «não traziam consigo os velhos textos socialistas de emancipação, redenção e comunidade, mas antes um Bíblia e um mapa» – e à nova classe política que dela emergiu. Estes terão convertido a maioria do país a uma atitude de indiferença diante do universo árabe com o qual convivia todos os dias, normalizando o espectáculo da humilhação sistemática dos palestinianos, e passando a tomar imediatamente como «anti-semita» quem, mesmo no interior do país, se atreva a divergir da atitude dominante.
Por outro lado, a consideração, por parte de Tony Judt, da simples possibilidade de se aceitar uma soberania partilhada com os palestinianos, considerada «fraca» e capitulacionista, tornou intolerável a simples consideração da sua voz aos olhos daqueles que nos últimos tempos decidem as coisas a partir de Tel Aviv e de Jerusalém, ou dos lobbies judaicos de orientação belicista sediados na América. Judt paga por isso. Mas, ao mesmo tempo, a sua voz sinaliza de certa forma a afirmação pública da possibilidade de se não considerar a guerra como o último e o único recurso para assegurar os direitos históricos de Israel e dos seus povos. Uma vez mais, discordar, principalmente discordar dos seus, tem custos. Como todos sabemos.