Depois de Portugal, Hoje: O Medo de Existir, editado em 2004, José Gil transformou-se, de certa forma, num «filósofo popular». Não que multidões de peregrinos tenham afluído às livrarias para comprar os seus livros ou obter a custo o precioso autógrafo. Nada disso. José Gil tornou-se conhecido fora do jardim da intelligentsia local porque deu algum destaque, naquele ensaio, a uma das características que os portugueses, num misto de autocomplacência e gozo, mais facilmente reconhecem em si próprios: a inveja como eixo da sociabilidade. Claro que a projecção não adveio de uma leitura aturada do texto – afinal, quantos marxistas leram Marx? quantos existencialistas se esqueceram de Sartre no porão? -, mas do eco propalado pelos média na precisa altura em que Santana Lopes, prestes a ser escorraçado do poder, chorava no ombro dos compatriotas a invídia que supostamente o vitimara.
Pois agora Gil publicou um livro mais curto, embora não menos mordaz e interveniente. Em Busca da Identidade – O Desnorte, da Relógio d’Água, tem de facto todas as condições para ser amado ou odiado, uma vez que constitui um brilhante libelo contra o Portugal visto da soleira do actual governo. Um ataque em forma lançado contra o culto obsidente da sacrossanta avaliação, medida de uma modernização desumanizada e sem outro norte que não aquele que ela própria inventa. Realidade da qual as maiorias se queixam, e que as maiorias temem, sem por isso serem capazes de mudar o seu sentido de voto.
Detecta-se, de início, uma imputação ao biénio revolucionário do 25 de Abril. Não ao período em si, mas às suas circunstâncias, sequência e desfecho, que rapidamente exauriram uma dimensão trágica ditada pela rua. Ela sim com capacidade regeneradora dos grandes vícios nacionais: a falta de confiança, a inércia, a autocomplacência, o queixume, a inveja. Ocorrendo porém, logo de seguida, um regresso ao estado de prostração herdado do salazarismo. O essencial do argumento passa então a centra-se nas vicissitudes da introjecção. Esta é olhada como uma ferramenta do conformismo, uma vez que situa uma integração neurótica de um mundo «engolido», mas sempre exterior, assente numa incapacidade congénita para traçar um caminho próprio. Um caminho não dependente de modas ou influências importadas, imune à psicose colectiva que se foi desenvolvendo.
Sucede-se então o diagnóstico de um discurso da governação, o de agora, que injecta na sociedade portuguesa um veneno que a impede de seguir um caminho próprio: «é o discurso da via única; é o discurso anti-ideológico que pretende emanar da evidência do “real” das próprias coisas»; (…) é o discurso da competência e da redução da subjectividade a perfiz numéricos de competências.» Como é também «o discurso que nega a diferença entre esquerda e direita, considerando-a obsoleta.» Nesta viagem, «a governação socialista» oferece-nos então «o instrumento para transitar sem percalços da velha sociedade para o novo modo de viver: a avaliação». Esta «dará e medirá», de uma vez por todas, «o mérito e a recompensa.» Gil refere-se então ao caso exemplar da avaliação dos professores, ocupando com ela perto de um quarto do livro, e mencionando a dimensão panóptica – no sentido delineado por Foucault – do sistema instituído pelo Ministério da Educação. Considera-o pós-kafkiano e fortemente marcado por «uma espécie de delírio que atravessa quotidianamente os seus conceptores e decisores.»
Claro que os alvos naturais deste ensaio – os actuais dirigentes socialistas em primeiro lugar, mas também muitos dos políticos partidários que sem sucesso os combatem noutras barricadas – dificilmente passarão da página 21, que é onde fecha a primeira parte do volume. Leitura difícil, indigesta e um pouco irritante para quem se dedica mais à sucessão de dossiês ou à leitura das gordas. Para quem segue na fila das prebendas. Impenetrável para os doentes crónicos do «chico-espertismo», observado por José Gil como «traço psicológico» de um certo padrão de arrivista nacional. E que pululam, agora como nunca, pelas áreas de decisão e seus interstícios.
Leitura complementar: entrevista de José Gil ao Público