Apontamentos do Maio – 5
Como se percebe pelas referências regulares que tenho feito a posts seus na barra da direita deste blogue, simpatizo com muitas das posições de Pedro Sales, de quem sou habitualmente leitor. Mas divirjo da forma como, no Zero de Conduta, comenta uma frase escrita por José Pacheco Pereira em 1973, referindo-se a Maio e a Crise da Civilização Burguesa, de António José Saraiva, como livro «para ler atentamente e queimar». Comento-a como pretexto para falar de uma prática, utilizada por vezes no combate político, que recuso de todo.
Não conheço ao pormenor, nem penso que tal interesse para o caso, aquilo que Pacheco Pereira possa ter dito agora, perante uma opinião pública sem memória, para minimizar os estragos que aquela frase possa provocar na sua imagem. O que sei, e aquilo que me importa, é que a sua posição na época se conformava com a atitude expressa pelos grupos maoístas – área na qual, como se sabe, então militava – a respeito da perspectiva estritamente lúdica, «idealista» e «pequeno-burguesa» de Saraiva sobre o Maio de 68. Um livro no qual se depreciava a função revolucionária da classe operária e da sua «ideologia de classe», insistindo-se, algo deslumbradamente, no papel criador que o Maio e as suas circunstâncias pareciam então destinar à juventude e à imaginação. Não se esqueça, a propósito, que se viviam então os ecos da Revolução Cultural Chinesa, durante a qual o libricídio – como a destruição de estátuas, retratos ou monumentos – era utilizado para promover o eclipse do conhecimento antigo e dos vestígios da cultura burguesa que o socialismo não tinha podido erradicar.
Não me parece bem que se pegue agora num passado com 35 ou 40 anos e se faça deste bandeira para diminuir as posições de alguém. Sobretudo quando tal passado correspondeu a uma fase da vida sobre a qual assumidamente esse alguém virou uma página. Por outro lado, a esquerda está igualmente cheia de gente de quem será relativamente fácil encontrar frases, juízos e actos «comprometedores», associados a atitudes de intolerância ou mesmo de violência como esta que José Pacheco Pereira, metaforicamente ou não, alvitrou. Mas nem a discordância política nem a perseguição ad hominem justificam o recurso a argumentos que em circunstâncias normais descartamos. E que, muito justamente, condenamos nos outros.