Uma das mais impressionantes descrições do horror da guerra, da total combustão provocada pelas bombas de enorme potência, da devastação para além do imaginável, foi produzida por Sebald na História Natural da Destruição, ao descrever Hamburgo reduzida, em Julho de 1943, a escombros, fantasmas errantes e cadáveres feitos em papa. E no entanto o escritor alemão referia-se a uma devastação silenciada, olhada durante décadas como justificável por ter acontecido do lado dos vencidos. Não tanto os nazis, que esses puderam sempre suicidar-se ou mudar de identidade, mas todos aqueles, pessoas mais ou menos comuns, que viram desmoronar-se o prometido «Reich de Mil Anos» e deveriam expiar até ao fim, na humilhação, no silêncio e na carne, a cumplicidade, involuntária ou não, com um horror considerado maior pelos vencedores.
Não me surpreende, pois, o emudecimento daqueles que calam hoje os crimes resultantes das bombas largadas nos últimos vinte anos sobre todo esse território, vasto e arenoso, que vai de Gaza até Cabul. Aqueles que mais de perto têm experimentado o seu impacto não estão do lado dos vencedores, pouco sabem do que representou Auschwitz, e jamais ouviram falar do Gulag ou mesmo de Guantánamo. Pouco sabem até das «fronteiras bíblicas» que lhes são atribuídas. Ou da liberdade da qual falam em seu nome. Não escolhem nem sabem que podem escolher, apenas vivem. E o horror que conhecem, e o ruído dos voos rasantes dos F-16 dos quais nos falam os títulos da manhã, apenas lhes importam na medida em que lhes interrompem os hábitos de sobrevivência. Vistos daqui do nosso conforto, ou lá de cima desde os cockpits, são apenas pontos negros que se movem e que olhamos com a mesma dose de piedade que experimentamos ao olharmos as moscas de verão liquidadas com um jacto de spray. O horror dos outros não existe quando o não vemos ou desviamos o olhar.
Publicado originalmente, por convite, no Corta-Fitas