Comer safio em Portugal

Ramalho em 1877, n’As Farpas. Uma singela homenagem deste blogue aos infelizes desalojados do 5 de Outubro de 1910.

Os touristes a quem foi denegada licença para celebrarem um pic-nic dentro da floresta do Bussaco, requereram respeitosamente a sua magestade que se dignasse conferir-lhes a permissão de comerem os peixes que tinham pescado para o pic-nic, não já dentro, mas sim fóra da matta.

Foi a este segundo requerimento, attendendo ás supplicas dos touristes e ao estado em que começavam a achar-se os peixes, que sua magestade se dignou de deferir de um modo inteiramente amavel e munificente.

O precedente estabelecido pelos touristes do Bussaco deixa-nos porém immersos na mais acerba incerteza ácerca dos pontos da superficie solida do reino em que nos é licito comermos peixe sem invadirmos as residencias de suas magestades.

Porque, desde o momento em que não só as grandes serras mas tambem as bacias dos valles adjacentes se consideram, pela jurisprudencia invocada no Bussaco, como dependencias dos aposentos da real familia, ficamos perplexos sobre se o safio que pescámos esta manhã no logar do Bico na praia da Cruz Quebrada o poderemos comer em nossa casa sem por este facto invadirmos, posto que inconscientemente, a sala de jantar dos nossos reis. E pedimos ardentemente para sermos esclarecidos sobre a solução d’este problema:

Dado um safio pescado á linha na ponta do Bico na praia da Cruz Quebrada; achando-se a Cruz Quebrada na dependencia geologica do Paço de Queluz pelo valle da ribeira do Jamor, e do Paço da Ajuda pelas quebradas e pelas vertentes da serra de Monsanto; achando-se por outro lado o safio ao lume dentro do seu respectivo tacho, entre duas camadas de cebola e tomate, com o competente fio d’azeite e o devido pimentão; tendo tido cinco minutos de fervura e havendo sido sacudido por duas vezes sem se destapar o tacho;

Pergunta-se:

Se podemos passar a comer o safio, collocados na dita latitude da Cruz Quebrada, entre os reaes paços de Queluz e da Ajuda, sem por esse acto faltarmos ao respeito devido á inviolabilidade das montanhas, dos valles e das ribeiras que suas magestades se dignaram eleger para residir.

Esperamos, com o safio ao lume e com o acatamento mais profundo pelas reaes ordens, que o sr. Barros e Cunha, encarregado juntamente com o sr. Alcobia de transformar as matas do reino em aposentos de sua magestade, queira dizer-nos se o monte em que habitamos pertence ou não ao numero d’aquelles que s. ex.ª se acha mobilando para recreio de suas magestades em collaboração com o seu socio nas reformas do ministerio das obras publicas o sr. estofador Alcobia.

O melhor talvez – permittam-nos os srs. Barros e Alcobia suggerirmos esta ideia – seria, para não estafar muito o ministerio de suas excellencias com o despacho de repetidas petições do caracter da nossa, que suas excellencias assignalem com marcos geodesicos as regiões que vão ser forradas de papel para aposentos reaes, e que n’esses postes se especifique com os devidos letreiros: Aqui se pode comer o saboroso peixe ou Aqui o saboroso peixe se não pode comer.

E o paiz todo beijará reconhecido a mão energica dos srs. conselheiros da coroa Alcobia e Barros e Cunha!

    História, Recortes.