O fascismo que existiu

Concordo muitas vezes com as observações jornalísticas de Vasco Pulido Valente. Muitas vezes, divirjo também do seu tom azedo e, em alguns momentos, gratuitamente provocatório. Para além de uma atenção crítica ao que se passa à sua volta – o que corresponde, actualmente, a uma atitude relativamente rara na imprensa diária – percebe-se uma grande capacidade para se dirigir directamente ao essencial das questões, contornando as meias-tintas próprias de quem tem pavor de chegar a uma conclusão dolorosa ou de levantar problemas que se metam com os fantasmas pessoais. Não posso, porém, deixar de discordar da posição de Pulido Valente quando há dias, em crónica saída no Público, resolveu levantar-se contra o movimento que tem procurado impedir que se destruam ou desvirtuem espaços e edifícios que, de alguma maneira, sinalizam a memória do país que era o Portugal dos anos do Estado Novo.

VPV referia aí, e bem, uma verdade que algumas pessoas insistem em negar, ou sequer em aceitar ouvir: o país de Salazar e de Caetano jamais viveu um fascismo típico, com a dose de violência e a dimensão totalitária que se sabe ter acontecido em países nos quais este fundamentou a razão de Estado, ou junto de movimentos que não lograram alcançar o poder mas lutaram por governos anti-democráticos, chauvinistas e intransigentes. O salazarismo foi essencialmente um conservadorismo autoritário, beato e pacóvio, que temeu sempre a febre de violência e de expansionismo do Estado que nas décadas de 1920 e 1930 envolveu principalmente a maioria dos cidadãos da Itália e da Alemanha (se aceitarmos o nazismo como um «fascismo» germanizado). A repressão e a censura, tal como a mobilização das consciências através da propaganda e da educação, foram de facto, entre nós, muito mais «benévolos» do que naqueles lugares. Nisto, VPV tem pois toda a razão.

Só que, apesar dessa «benignidade», o regime salazarista conformou, em Portugal, uma sociedade fechada, desigual, desumanizada, repressiva, arcaizante, cujos sinais aparentemente incorpóreos permanecem em muitos dos nossos atavismos, mas cuja conformação visível se situa nas práticas objectivas e na herança cultural que nos legou. Basta – recomendo-a a quem para tal tenha paciência – uma leitura atenta dos interesses e dos códigos evidenciados todos os dias pela maioria da nossa imprensa regional. Aí, sobrevive ainda o nosso «fascismo» caseiro. É nesse sentido que, enquanto «lugares da memória» e nichos de resistência, as prisões políticas ou os edifícios da Pide – em conjunto com todos os espaços simbólicos que despertam para a lembrança daquela época – merecem ser preservados. Ficarão como sinais de que por aqui existiu, legando ao presente as suas marcas repulsivas, um tempo de ordem e barbárie.

    Opinião.