Não posso senão concordar com o óbvio, transformado em evidência nestes últimos dias de campanha: se o revanchismo marca-PSD não ganhar as eleições por uns módicos milhares de votos, o cenário inevitável será o da vitória de um PS em queda, com uma subida bastante acentuada do Bloco de Esquerda e outra, menos resplandecente embora perceptível, do Partido Comunista. O passo seguinte deverá passar – pois alguém terá de ficar com as chaves da quinta e geri-la – pela materialização de uma aproximação à esquerda. Seja esta aproximação traduzida num «pacto de governo» ou em acordos pontuais no interior do espaço parlamentar. O segundo cenário é menos complexo e esboçá-lo é menos urgente, pois as soluções serão encontradas a médio prazo, caso a caso, num esforço de negociação que em alguns momentos regressará ao centro, podendo mesmo incluir sectores do PSD. Já um «pacto de governo» supõe uma decisão mais rápida mas também mais difícil.
Em artigo publicado hoje no Público, o meu amigo e colega Elísio Estanque desenha muito bem o cenário provável e algumas das dificuldades colocadas na sua construção. Transcrevo-o parcialmente, em total concordância:
«Entre uma cultura de rigidez e de autismo como é a do PCP (um partido que, queira-se ou não, está em processo lento de implosão) e uma cultura de maior dinamismo e democraticidade interna como é a do BE (um partido que, queira-se ou não, está em fase de consolidação como terceira força política), terá por isso mais lógica esperarmos uma aproximação entre o PS e o Bloco (caso consigam, em conjunto, uma maioria de deputados).»
Para depois continuar:
«Se admitirmos que os socialistas e o seu actual líder já se deram conta de alguns dos erros políticos cometidos nesta legislatura, não só no estilo e no diálogo com a sociedade, mas também em áreas políticas decisivas (como a educação, o trabalho, etc.), é razoável esperar que algumas concessões ocorram nesses domínios, tendo em vista um possível acordo parlamentar à esquerda. Idealmente, esse acordo deveria abranger o PCP e o BE, mas tal parece irrealista. Assim, uma aproximação entre o PS e o BE será o requisito mínimo para um governo estável e de esquerda.»
Também me parece ser este o cenário possível e desejável dentro das actuais circunstâncias, ainda que duvide um pouco da viabilidade da sua materialização. Esta dúvida prende-se com um problema que EE apenas aflora mas que a mim parece dever merecer especial atenção. Se olharmos bem a projecção dessa possível paisagem, a maior expectativa de quem a deseja ou prepara não se limitará ao resultado do simples somatório dos votos depositados nas urnas e à consequente solução institucional, mas antes àquilo que de autenticamente novo essa aproximação trará à história democrática da nossa Terceira República, no contexto de um processo inevitável de reidentificação tanto do PS quanto do Bloco. Ora é a existência de vontade política para dinamizar esta viragem que não consigo ainda vislumbrar.
Para o PS, tratar-se-á de uma alteração de políticas e de comportamentos nas mais diversas áreas, bem como uma partilha parcial de cargos e de poder, com o necessário recuo dos sectores mais empenhadamente autoritaristas e defensores de um «neoliberalismo moderado» como único sistema viável. Para o Bloco, será a perda gradual de uma cultura ainda essencialmente protestativa e abertamente fracturante, com o recuo, ou mesmo o apagamento, das franjas radicais e tardo-marxistas, minoritárias na contagem dos votos mas organicamente activas, que ainda o povoam. Isto não significa o desaparecimento das diferenças, mas obrigará a uma diluição das áreas de conflito, o que poderá provocar, numa e noutra de ambas as forças, alterações irreversíveis. Significará uma coabitação em «comunhão de adquiridos» que forçará novos equilíbrios e radicalizará, numa dinâmica centrífuga, determinados sectores da margem esquerda da actual vida política. Inventario apenas alguns, não carecendo de ser adivinho para o poder fazer: um recuo da ala mais à direita do aparelho e da clientela do PS, um upgrade da cultura política do Bloco em articulação com a prática de poder, o esvaziamento formal do fugaz «alegrismo», um incremento da «urbanização» da base social de apoio do governo, a radicalização e a recomposição da extrema-esquerda supervivente, a estabilização definitiva do PCP como partido de protesto antieuropeísta ou a sua improvável adaptação ao século 21.
Por isso não vejo a possível ou inevitável aproximação entre PS e BE como um fim em si na construção de uma solução governativa estável e mais justa dentro do sistema democrático imperfeito no qual vivemos. Vejo-a antes como um momento – possível, repito, embora pouco provável – para conter e superar os excessos anti-socialistas da política governativa simbolizada pelo actual «socratismo» rosa-cinzento. Apenas como uma etapa, como um tempo de mudança, para algo que ainda não podemos vislumbrar mas virá depois. Talvez, como escreve EE, ela possa representar «um decisivo virar de página na história da esquerda e da democracia portuguesa». Talvez. Uma fantasia boa que pode, ou poderia, tornar-se realidade. Daquelas das quais despertamos com um ténue sorriso nos lábios, antes de retornarmos à aspereza da vida de todos os dias. Mas bem sabemos como não existe uma «ciência do real» e tudo avança por processos repetidos de tentativa e erro.