Contou-me certa vez um antigo dirigente estudantil que na juventude tinha lido e sublinhado integralmente O Capital. Disse-lhe então uma coisa um bocado destemperada mas sincera: «Acho que merecia um prémio. Ao fim destes anos todos a viver como marxista e ex-marxista, e a conviver com marxistas e ex-marxistas, é a primeira pessoa que encontro que tenha lido O Capital de uma ponta à outra». Admito que também não o li na totalidade e costumo sempre sugerir a quem sei que jamais o lerá – mas precise de alguns rudimentos sobre os conceitos de mais-valia e de modo de produção capitalista – que ao menos se entretenha com o prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política. Como é sabido, este apontava já para algumas das principais teses desenvolvidas anos depois no livro mais espesso do barbudo de Trier.
Lembrei-me disto quando soube hoje pelos jornais que os resultados de um inquérito feito a nível nacional revela que «apenas» 9,7% dos portugueses leram a Bíblia Sagrada. Por acaso sou um deles, embora o tenha feito numa idade em que apenas vi aquilo que queria ver: uma narrativa mágica sobre a eterna luta entre o Bem e o Mal que eu concebia à imagem e semelhança de um filme de Cecil B. DeMille ou de William Wyler. Mas pelo que conheço dos meus compatriotas e dos seus hábitos de leitura – a larga maioria nem o Código da Estrada de João Catatau terá lido com atenção de fio a pavio –, não me parece que tantos o tenham feito. Corro alguns riscos ao dizer isto, mas acredito que uma boa parte dos que afirmaram ter lido a Bíblia se devem referir a fragmentos do Novo Testamento escutados num ofício religioso ou àquele intocado volume negro de capa cartonada que têm lá em casa, dignamente perfilado com a Enciclopédia Alfa, o Livro de Pantagruel e os volumes encadernados da obra completa de Agatha Christie que escondem da pequenada a trilogia do Henry Miller. Ou será mesmo assim ou então a vida terá feito de mim um cínico e um incréu.