Lembro-me de há uns doze anos atrás ter ensaiado – na época um passo em falso, ainda não tinha chegado o momento certo – um olhar sobre o passado colonial que parecia então tão improvável quanto impopular. Na altura, os estudos sobre a Guerra Colonial apenas começavam a gatinhar e, para quem se interessava pelo assunto, a única paisagem humana aceitável era composta pelos militares da tropa, pelos guerrilheiros que se lhes opunham e pelas populações africanas que enchiam a única paisagem visível. Os outros, bem, os outros tinham andado por ali, é verdade, mas era como se não tivessem andado: as centenas de milhares de portugueses de diferentes gerações que tinha povoado os territórios de Angola e de Moçambique nos anos de guerra deviam permanecer invisíveis, dentro do cordão sanitário da memória que protegia o bom povo do seu cheiro pestilento.
Eram ainda os «retornados», gente apátrida, culpada de ter existido, de sobreviver, e de, por isso, carregar consigo a memória de um passado que deveria ser apagado. E, no entanto, sem essas centenas de milhares de homens, de mulheres, de crianças – brancos, sobretudo brancos, mas também mulatos, cabritos, uns quantos negros assimilados – a realidade da última vaga da colonização, da guerra sangrenta, das independências paridas com dor, da inquietante experiência pós-colonial tal qual ela se define hoje, jamais teria existido. Fosse qual fosse o juízo de valor que pudesse ser feito em relação à colaboração de uma grande parte dessas pessoas na manutenção do jugo colonial – e eu fi-lo também, e bem negativo –, elas existiam, e tinha atravessado experiências de vida que não poderiam ser apagadas. A História de Portugal, de Angola, de Moçambique, de São Tomé, das outras antigas colónias, jamais poderá ser feita, percebemo-lo agora, sem se dar vida – retirando à maior parte desses seres humanos os qualificativos simplistas de algozes ou de cúmplices – a toda essa outra vida que ficou para trás mas que nos preenche.
Por isso, para que tudo isso possa ser reconhecido, e possam sair dos escombros pedaços de existência injustamente esquecidos, são indispensáveis livros recém-editados como o Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo (na Angelus Novus), e Moderno Tropical, de Ana Magalhães e Inês Gonçalves (da Tinta-da-China). O primeiro é um magnífico, e ainda raro, exemplo de uma literatura autobiográfica saída do universo caseiro dos torna-viagem regressados do lado sul do Equador. Aqueles que respiram todos os dias connosco mas deixaram parte constitutiva das suas vidas num tempo que se perdeu mas se pressente ou se adivinha: «Ao domingo à tarde a rádio passava Nelson Ned cantando Domingo à Tarde. Ao domingo à tarde íamos ao cinema.» O segundo reintroduz-nos nessa arquitectura colonial de última geração, agora semivazia, decrépita e visivelmente abandonada, erguida em Angola e Moçambique entre 1948 e 1975, que nos leva de volta a uma certa «beleza nostálgica das cidades da África lusófona». Das cidades do asfalto, naturalmente, pois são estas que aqui preenchem a paisagem humana. Dois livros que vomitam vida por todos os lados, e que não deixarão indiferentes quem os percorrer. Padeça-se ou não dessa espécie de vírus, ainda não cientificamente identificado, e muito menos provido de antídoto, conhecido entre nós por bichinho de África.