No Verão de 1944, logo após a chegada a Auschwitz, Primo Levi conhece um jovem judeu alsaciano, Jean Samuel, de enorme força física mas comportamento imperturbavelmente afável, a quem deu a alcunha de Pikolo. O escritor italiano evoca-o em Se isto é um homem como encarnação da dignidade preservada no meio do horror total, da humanidade que mal algum poderá aniquilar, e depois da libertação Pikolo manteve com ele um relacionamento apenas terminado em 1987 com a morte trágica de Levi. Durante longos anos, Samuel permaneceu em silêncio sobre a sua experiência dos lagern nazis e só muito tarde, confrontado com o desaparecimento físico de um número cada vez maior de sobreviventes, se resolveu a falar. O historiador Jean-Marc Dreyfus recupera esse testemunho em Chamava-me Pikolo, associando-lhe importantes fragmentos de cartas trocadas entre Levi e o seu velho amigo. Nestas, como nas palavras de Samuel reveladas neste pequeno volume, mais do que a memória de uma experiência-limite, única de tão brutal, sobressai o esforço ininterrupto de ambos para justificarem e tornarem aceitável, diante dos outros como de si próprios, a estranha condição de «homens normais». Sobreviventes de «um passado de recordações, mas de recordações objectivas» do qual a maioria das pessoas nada agora queria saber, preferindo ignorar a indizível dor e os pesadelos intermináveis de quem o viveu. [Jean Samuel e Jean-Marc Dreyfus, Chamava-me Pikolo. Trad. de Francisco Agarez. Pedra da Lua, 152 págs.]