Deixei aqui um pequeno texto no qual afirmava que o impacto local do renovado ambiente da cultura popular, ou «de massas», internacionalmente definida ao longo dos vinte anos que duraram os sixties, preparou – apoiado sobretudo na juventude estudantil, nas novas gerações de profissionais liberais e numa classe média urbana em expansão – um clima de rejeição do regime que veio a cair em Abril de 1974. Outros textos, aparecidos essencialmente em blogues, têm entretanto levantado a questão em idênticos termos, ainda que com nuances naturais na abordagem de uma realidade da história das últimas décadas que, sobretudo por ter grande parte dos seus actores ainda vivos e atentos, e também por dela ainda se recolherem as ondas de choque, permanece bastante quente. Surge hoje no Público um texto, assumido como resposta à tendência interpretativa que tem dominado esta polémica, no qual o dirigente do PCP Vítor Dias recoloca a questão em termos muito diferentes daqueles que anotei.
Desde já uma ressalva. Ao contrário do que infere VD, nenhum dos textos sobre o assunto que eu tenha lido – nem mesmo o inaugural de Vasco Pulido Valente, pelo que se vê saudavelmente provocador – desvaloriza aquilo a que ele chama «a luta popular e democrática». Vinda de muito antes, esta continuou, à margem de modas e epifenómenos, no meio da dura repressão salazarista, mas também das purgas internas e das reviravoltas tácticas, a ser essencialmente organizada pelos comunistas, tendo sido pautada por iniciativas, sobretudo de natureza reivindicativa, que procuravam combater, sempre na expectativa de um amanhã melhor, as injustiças e as desigualdades instaladas na sociedade portuguesa. Ela foi essencial, sem dúvida, para a redução de muitas arbitrariedades e para a afirmação de uma resistência que chegou ao poder após o 25 de Abril e que viveu depois, em liberdade, a instalação da democracia representativa. Nada disto parece questionável ou foi sequer questionado.
Já o mesmo não posso dizer em relação ao que se passava no tal universo urbano habitado por uma juventude com anseios radicalmente novos e por uma classe média sedenta de autonomia, ambas crescentemente adversas às práticas do regime e ao seu código de valores. VD, ao dizer, com o objectivo claro de relativizar a importância deste sector nos processos de mudança, que na época «os estudantes universitários andavam por 30.000 ou pouco mais», o que é verdade, faz por esquecer de que se falou de um arco temporal de cerca de 15 anos, e que, durante todos esses anos, a multiplicação de estudantes e ex-estudantes, portadores de uma experiência de oposição cultural e vivencial, ter-se-á ampliado, no todo, a várias centenas de milhares de pessoas, às quais podem ainda associar-se, frequentes vezes, muitos dos seus familiares, os amigos chegados, os conterrâneos… Por outro lado, o lugar deste amplo sector, numa altura em que a dinâmica social fazia recuar o peso dos operários e dos camponeses – que integrariam prioritariamente a «luta popular» da qual fala VD – era de um cada vez maior destaque, na definição de comportamentos de natureza anti-disciplinar tal como na organização dos processos de mudança. Estou em crer que o próprio regime o acabava por reconhecer, ao mostrar-se incapaz de reprimir a contestação ou as iniciativas de resistência desses sectores com a mesma inflexível brutalidade com a qual, anteriormente, reprimira a luta operária, as revoltas campesinas ou a dissidência intelectual.
Um livro de entrevistas, feito a activistas estudantis da época, que organizei em conjunto com Maria Manuela Cruzeiro e que estará muito em breve disponível (Anos Inquietos. Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974), ed. Afrontamento), mostra documentalmente, com razoável clareza, a emergência dessa noção, geracional se se quiser, de uma incontornável desafectação em relação ao Estado Novo, a qual nasceu, para quase todos os seus actores, como experiência natural de resistência a um poder que viam como caduco, injusto e fora do seu tempo. A militância partidária, nos casos, muitos, em que aconteceu, ocorreu sempre razoavelmente depois dessa tomada de consciência e dessa predisposição para se afirmarem como sendo «do contra». Incluindo – sublinho isto – aquela que aconteceu dentro do próprio movimento estudantil.
A «festa», a ruptura pelo lado da vivência do quotidiano, da sensibilidade, da estética, da experiência individual, que, hoje como ontem, aqui como noutras partes, incluindo na Paris ou na Praga de 1968, os comunistas essencialmente desvalorizaram e desvalorizam – utilizando-a apenas como chamariz de alguns sectores juvenis incapazes hoje de viverem sem ela – não significava, como VD insinua e como Álvaro Cunhal deixou claro no texto sobre o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista» com o qual, em parte, pretendeu riscar de alto a baixo o livro Maio e a Crise da Civilização Burguesa (publicado em 1970 por António José Saraiva), um néscio alheamento da realidade. Mas antes uma reacção natural perante um mundo que ruía sem que se percebesse muito bem que outro mundo dali poderia emergir. Coisa que a «ideologia da classe operária», bem como os seus presumíveis oficiantes, jamais serão capaz de abarcar ou simplesmente de aceitar.
VD conclui o texto, afirmando, para diminuir o valor dos testemunhos daqueles que interpretam aquele passado mais a partir da sua experiência vivida do que das cartilhas que lhe pretendem atribuir um sentido meta-histórico, que «o nosso umbigo é o pior e mais limitado horizonte para conhecer o país, a vida e a sua história». Eu poderia dizer a mesma coisa, ainda que, a partir das conquistas do vocabulário político da geração de 60 – que, ao contrário de Vítor Dias, não coloco entre aspas – o prefira fazer com palavras menos previsíveis.