Se história e memória não são a mesma coisa, uma não existe sem a outra, uma vez que ambas têm como referente o passado e os ecos que deles nos chegam, influenciando-se reciprocamente no processo de construção e de apagamento. Sabemos, por exemplo, como a revisão da história, levada a cabo muitas vezes por políticos e historiadores, começa antes por uma manipulação da memória colectiva, criando-se as condições para que, de seguida, certos «técnicos do passado» executem o seu trabalho sombrio. Assim ocorre entre nós, por exemplo, com a recente «suavização» do salazarismo, que começou com a tentativa de injecção mediatizada, no imaginário colectivo, de um ditador de Santa Comba com um ar simpático ou até de playboy, e tem prosseguido com a produção de livros, artigos e eventos destinados a activar um certo processo de branqueamento do homem e da sua acção.
Este método é universal, e daí o cuidado que é preciso ter perante a manipulação do conhecimento histórico como cenário que legitima as escolhas do presente. Só o esquecimento desse lado ambíguo da história pode assim permitir, por exemplo, que os responsáveis da selecção argelina de futebol tenham escolhido como designação utilizada, pelos jogadores que em Angola disputam neste momento o CAN 2010, o qualificativo de «raposas do deserto». É verdade que estas são pequenos canídeos que habitam as regiões desérticas, semidesérticas e montanhosas do Norte de África, contendo por isso uma simbologia local própria. Mas para quem tem como referente histórico o conflito brutal que foi a Segunda Grande Guerra – e o CAN é já um acontecimento global, que por isso não pode ignorá-lo – a «Raposa do Deserto» era Erwin Rommel, o arguto e inflexível comandante-em-chefe do Afrika Korps, com qual Hitler procurou obter o controlo estratégico do Magrebe e do Egipto. Conhecido na época, entre muitos árabes, como «o Libertador», por ter combatido frontalmente a presença imperial inglesa na região. Trata-se, provavelmente, de um episódico caso de desconhecimento ou de amnésia. Não é grave e não vale uma tempestade, pois a Guerra é já, para a esmagadora maioria das pessoas, um acontecimento longínquo, quase de ficção. Mas não deixa de ser sintomático.
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