Um post com quatro anos recuperado do baú das futilidades.
Quando falamos de nós próprios é difícil esquivar a insolência. Se somos demasiado benévolos parecemos arrogantes, se nos fazemos de humildes ou despretensiosos tudo soa a contrafeito. E se procuramos parecer imparciais fazemos com que a nossa vida pareça um pântano de apatia e displicência. Mas vou correr o risco de desempenhar um desses papéis dizendo que gosto de me ver como um tipo da província. A figura faz-me uns anos mais novo e deixa que me sejam perdoados erros e omissões, bem como uma ou outra quebra das regras de etiqueta. Gosto dela porque me serve de máscara e às vezes de álibi. É pois como provinciano que me repugna um tanto o jogo social que passa pela ostentação da própria singularidade. Naquela atitude a que os decadentistas franceses da segunda metade do século XIX chamavam, à época com relativa propriedade, «épater la bourgeoisie». Ora é esta rejeição visceral do poseur que me fez gostar de ter conhecido um episódio como o relatado por Enrique Vila-Matas no Diário Volúvel.
«Estive a rever o embate televisivo, em 1980, entre Catherine Ringer e Serge Gaisnbourg. A primeira coisa que ali vemos é Ringer, cantora do dueto Les Rita Mitsouko e moderna a cheirar a novo, sentada ao lado de um moderno consolidado, o volúvel Gainsbourg. Não tarda a verificar-se o previsível choque, talvez geracional. Ringer, empenhada em épater o moderno consolidado, contou que tinha participado em filmes porno e foi interrompida por um depreciativo Gainsbourg, que lhe disse que isso era simplesmente fazer de puta e não podia causar mais vómitos. A conversa enrolou-se durante um bom bocado, porque Ringer (genial artista que me revelou Sergi Pàmies, o Inverno passado) recusou-se a aceitar que ser actriz porno fosse repugnante e ela uma puta. Gainsbourg insistiu que ser puta era nauseabundo. Ringer disse então que quem era asqueroso era precisamente ele, mas acabou por aceitar, com um meio-sorriso, que o seu passado era repugnante. «Em todo o caso», desculpou-se Ringer, «o meu trabalho faz parte da aventura moderna.» E então o caldo entornou-se de vez, e o momento acabou por se tornar memorável.
– Ah, não! – disse um exaltado Gainsbourg – A aventura moderna não é repugnante. Nós temos ética.
Se Rimbaud, no século XIX, semeou a essência do ser moderno em França, Gainsbourg, na mesma França, apontou o fim do «vale tudo», marcou os limites morais da vanguarda e deu o primeiro pontapé na modernidade sem ética. Um momento histórico.»
Se o foi ou não um momento desses, isso eu não sei. Provavelmente Vila-Matas está a exagerar um bom pedaço. Mas que compreendo a repugnância de Gainsbourg perante um Catherinezinha a gabar-se em público da absurda originalidade das suas manobras de ginásio – e isto aconteceu há 30 anos, por favor não esqueçam –, lá isso compreendo. Se bem que também Serge fosse um enorme poseur. No fundo andamos quase todos ao mesmo.