Existe uma «falha de memória» no que respeita à vida dos portugueses que retornaram à «Metrópole» – muitos deles pisando pela primeira vez solo europeu – nos anos quentes da descolonização. Uma falha de memória processada em duas direcções: de um lado, esse passado foi praticamente apagado pela maioria dos «portugueses de Portugal», envolvidos na culpa e no remorso da dominação colonial e desejosos de se penitenciarem exorcizando-a; do outro, os próprios ex-colonos foram silenciando o que tinham vivido, esperando talvez, por essa forma, obter uma mais rápida adaptação à sua nova vida europeia. A própria historiografia participou deste processo, aplicando-se a partir de dada altura em conhecer a realidade da guerra ou a emergência das novas nações, mas omitindo uma parte importante da vida «branca» que ficara para trás. Quanto aos ex-colonos, o seu emudecimento contribuiu, imperceptivelmente, para a construção de mitos e fábulas a propósito da experiência passada, sublinhando as boas recordações de uma «vida maravilhosa» que se perdera, mas geralmente abafando as más.
Nos últimos tempos, porém, um certo revivalismo colonial apoderou-se da edição nacional. É verdade que a visibilidade pública dessa romagem de saudade permanece contida, mas o número de publicações – álbuns de imagens ou musicais, livros de memórias, romances de temática colonial – denuncia a existência de um público interessado e, pelo menos na aparência, ainda vasto. Imagino muitas dessas pessoas, no resguardo da sua sala de estar, folheando noite afora estes livros com emoção, algumas lágrimas ocasionais, e, não poucas vezes, também um pouco de azedume. Uma destas obras, que acabo de comprar já em 2ª edição, é Angola, Terra Prometida, subintitulada «A vida que os portugueses deixaram», da autoria da jornalista freelancer Ana Sofia Fonseca e publicada pela Esfera dos Livros.
Sirvo-me do texto da contracapa para um panorama que me parece correcto: «Através de testemunhos de uma pesquisa exaustiva [a autora] leva-nos aos bairros de Luanda, ao mato e às praias. Ao dia-a-dia dos portugueses, aos seus usos e costumes. Em suma redesenha os contornos de uma vida que já só existe nas recordações de quem a viveu.» Entrevistas, cartas, diários, fotografias, jornais, cartazes, postais, servem então para trazer à vida os banhos de mar quente, a Cuca gelada, as lagostas, o cinema ao ar livre, «o cheiro a terra encarnada, os bailes, as grandes festas». E também as caçadas, os amores, o sexo, as velhas amizades, «os melhores anos da vida de muitos portugueses». A realidade e a imaginação de um mundo-outro que de facto existiu, embora assente sobre um colchão de espuma ou rodeado por uma campânula de vidro que desvanecia ou distorcia a restante paisagem, cego para os fumos de guerra que lhe deveriam toldar o horizonte.
Ana Sofia Fonseca – que se serve aqui, por vezes, de uma linguagem pitoresca e aparentemente démodé, contaminada sem dúvida pela fala das pessoas com as quais dialogou e o vocabulário dos documentos dos quais se serviu – chama-lhe um livro «de memórias, histórias e emoções». É-o, sem sombra de dúvida, como é também um livro nostálgico. Mas a nostalgia não é um mal em si, e, como acontece neste caso, serve muitas vezes não só para ajudar a encontrar rincões de vida que de outra forma se perderiam para sempre, como para observar, a partir do presente e com diferentes olhos, aquilo que, na altura, a premência do quotidiano ou a magia da «vida boa» impediram de perceber ou remeteram para um plano distante. Falo, naturalmente, da guerra colonial e da experiência diária dos outros angolanos. Geralmente os de pele menos clara, sem tempo e dinheiro para habitarem esse «cenário perfeito para uma vida feita de pequenos e inesquecíveis prazeres». Um cenário no qual, sem dúvida pela interferência de um esforço de imparcialidade da autora, ainda assim vão de vez em quando assomando.
Ana Sofia Fonseca, Angola, Terra Prometida. A vida que os portugueses deixaram. A Esfera dos Livros, 2009. 328 págs.