A divulgação, por parte do cidadão Manuel Alegre de Melo Duarte, dos dados constantes do seu registo militar, tem contornos deploráveis que não podem ser ocultos do exame público. Essa publicitação, feita no site www.manualalegre.com, destina-se a demonstrar que o candidato presidencial «não tem nada a esconder, ao contrário dos cobardes que espalham calúnias a coberto do anonimato e contra os quais não deixará de agir judicialmente» e a provar que «cumpriu o serviço militar, nomeadamente em África e em situações de combate». Mas contém implícito um julgamento da maior gravidade em termos históricos e democráticos: a «acusação» que corre é a de que Alegre terá sido desertor do exército português, variando os boatos apenas ao colocarem o momento da deserção antes da mobilização para África ou já no teatro de guerra angolano. Trata-se de uma questão tornada agora sensível mas que não deveria sê-lo, e é estranho ser um candidato da esquerda, e um resistente ao regime derrotado no 25 de Abril de 1974, a abordá-la desta forma.
O número de desertores e de refractários foi sempre muito grande durante a Guerra Colonial, crescendo de forma constante ao longo dos treze anos do conflito, como o revelam os dados divulgados em 1988 pelo próprio Estado-Maior Exército: em 1961 a percentagem de faltosos foi de 11,6%, em 62 subira já para 12,8%, em 1963 atingia os 15,6%, em 1964 subia para 16,5%, entre 1965 e 1968 rondaria os 19%, e entre 70 e 72 andou sempre muito perto dos 21%. Naturalmente, a motivação para «fugir à guerra» ou para abandoná-la a determinado momento, foi sempre diversa. Mas tenha sido ela concretizada por motivos abertamente políticos, por condicionantes de natureza económica ou por actos do domínio da objecção de consciência, tratou-se sempre de uma escolha determinada por uma guerra injusta, como tal legitimadora das mais diversas formas de resistência. De entre elas, a deserção.
Para além disso, a chamada «deserção política», aquela da qual Alegre tem sido acusado e da qual se serve periodicamente a direita para tecer insinuações de «cobardia», representou para muitos milhares de jovens um acto de bravura, uma vez que os condenou ao duro exílio, à prisão, ou, por vezes, à clandestinidade. Em qualquer dos casos a uma existência muito difícil, que sabiam ser inevitável em função do seu gesto arriscado e definitivo. Desertar era resistir, tal como, de forma diferenciada mas constante, defendia publicamente a larga maioria da oposição ao Estado Novo, da qual Alegre fez parte e foi importante símbolo. Declarações desta natureza, no mínimo ambíguas, deixam no ar uma desconsideração da coragem de desertar da Guerra Colonial que pode trazer uns quantos votos do eleitorado «viril» mas é pouco digna de um resistente. São inaceitáveis e ofensivas para muitos portugueses vivos ou mortos. E nada têm a ver com o respeito devido à larga maioria daqueles que fizeram a difícil guerra por escolha ou incapacidade para a recusarem.
Uma declaração de interesses necessária: fui desertor do exército colonial por razões políticas – forçado a algum tempo de clandestinidade, mas reintegrado nas fileiras em Dezembro de 1974 – e, se não se multiplicarem circunstâncias que me levem a mudar de azimute, conto votar em Manuel Alegre na próxima eleição presidencial.
Adenda: um post lateral
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