Será pedir demais?

Café

Todos sabemos, ou vamos sabendo à medida que o tempo roda, que a possibilidade de nos deixarmos  surpreender vai sempre diminuindo. A acumulação de experiência faz-nos perder alguma capacidade de maravilhamento – eis o lado triste do processo –, mas prepara-nos também para os momentos difíceis que precisaremos enfrentar. Quando tudo decorre de forma natural, o último deles, o da nossa própria morte, é recebido com serenidade, sem grande espanto ou gestos tempestuosos. Dizem-me que é assim e não estou em condições de duvidar de que assim seja.

Em algumas situações, porém, a nossa crescente capacidade de encaixe pode vacilar. Eu, por exemplo, não consigo compreender o motivo pelo qual, nos jornais e nos blogues, um certo número da intelligentsia que apoia activamente actual governo – pessoas informadas, com comprovada capacidade crítica, sensibilidade manifesta e inteligência acima da média – se concentram diariamente, e apenas, na defesa de qualquer medida gestionária do executivo, de qualquer gemido ou murmúrio de um seu responsável, e na tentativa de destruição sistemática de qualquer argumento que se lhes oponha minimamente, em vez de aplicarem os seus esforços na construção de uma solução para actual crise que não seja simplesmente ao nível do reflexo condicionado. De outra política, ousada, mobilizadora, que se aplique a combater a doença e não apenas a abordar os sintomas com um paliativo.

Porque não acordam estas pessoas – de quem se espera sempre algo mais – e deixam a defesa cega da quinta para os quadros partidários ou do governo, em ascensão ou instalados, em geral sem capacidade para pensarem melhor ou irem mais longe, que não concebem outro caminho, e não se concentram na busca, necessariamente positiva e dialogante, de alternativas políticas ousadas e construídas em profundidade? Em vez de se limitarem a silêncios comprometidos ou a reacções indignadas e de casta diante do comentário negativo, da contestação legítima, da desconfiança e do desânimo que se propagam, elas deveriam exercer a sua condição de massa crítica do Partido Socialista para requererem soluções que não sejam apenas, uma vez mais, as centradas no balancete enfadonho da mercearia, na pequenez da legislação estritamente casuística, na resposta pavloviana aos ditames de burocracia bruxelense ou no apelo ao apertar do cinto por parte de quem já o mantém estreitado no derradeiro furo. Não será pedir demais.

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