Em Terezín, uma localidade checa que cresceu à volta de uma fortaleza mandada construir a 60 quilómetros de Praga, em 1780, pelo imperador José II, Hitler fez erguer «uma cidade para judeus» que pretendia modelar. O seu objectivo continha uma dupla face: por um lado, a cidade servia para mostrar, às autoridades dos países neutrais ou a alguns aliados dos nazis que pudessem mostrar-se mais sensíveis às primeiras informações sobre a natureza da Solução Final, a forma como os judeus viviam bem sob a protecção de um «benevolente» Terceiro Reich; por outro, permitia a concentração de mão-de-obra particularmente qualificada, uma vez que os judeus destinados a habitar a cidade, agora baptizada Theresienstadt, eram em regra pessoas com uma formação superior. Muitos deles eram músicos, actores, artistas, escritores, jornalistas, ou membros destacados de organizações políticas entretanto ilegalizadas. Logo, pessoas perigosas mas «apresentáveis» e temporariamente úteis.
A cidade tinha uma dupla face distópica-utópica. Internamente funcionava como um campo de concentração vulgar, utilizado como entreposto destinado a rentabilizar um certo tipo de trabalho antes dos detidos serem enviados, na esmagadora maioria, para Auschwitz. Estima-se que cerca de 160.000 pessoas tenham passado por Terezín – pela fortaleza ou pela urbe envolvente, que funcionava como um ghetto –, das quais pouco mais de 17.000 terão sobrevivido. Mas exteriormente Terezín era apresentada como uma cidade fabulosa, perfeita, na qual a população residente viveria feliz e em harmonia com os seus carcereiros, ao mesmo tempo que se dedicava a actividades nada penosas como assistir a concertos e a peças de teatro, visitar exposições, assistir à projecção de filmes ou entusiasmar-se com jogos de futebol. Este objectivo foi parcialmente conseguido nos inícios de 1944, com a visita de uma delegação da Cruz Vermelha que, ressalvando pequenas dúvidas surgidas a posteriori, se deixou enganar pela encenação nazi, e depois com a realização de um filme destinado a «documentar» no exterior o dia-a-dia perfeito do campo. No entanto, o filme nunca foi completamente montado e dele restaram apenas alguns fragmentos [ver abaixo o que dele resta], tendo tanto os actores como o realizador, o judeu Kurt Gerron, sido enviados de seguida para Auschwitz, onde foram gaseados.
É sobre este cenário que Daniel Blaufuks criou um álbum sublime, Terezín, editado agora pela Steidl e também pela Tinta-da-China. O fotógrafo português parte de uma imagem de baixa qualidade, deixada por W. G. Sebald no romance Austerlitz, mostrando a sala de arquivo do correio da fortaleza no interior da qual tantas pessoas percorreram a etapa definitiva das suas vidas.
«A luz entra pelo lado esquerdo da imagem, de tal modo que nos apercebemos imediatamente da existência de uma janela defronte da porta, ainda que essa janela esteja fora da imagem. A luz recai directamente sobre a mesa vazia e as sombras no soalho de madeira são longas, dando a impressão de que a fotografia foi tirada ao final da tarde. Segundo o relógio, são exactamente seis da tarde.»
A partir de uma revisitação da sala, que fotografa agora com uma qualidade particular mas servindo-se de uma luminosidade que conserva a perpetuidade das sombras, revela imagens de cadernos que pertenceram aos prisioneiros, de espaços que estes um dia percorreram, das salas tal como podem agora ser observadas e pelas quais ecoou um dia o ruído hórrido das botifarras militares. O núcleo fundamental desta obra é, no entanto, constituído por uma revisitação do filme de propaganda que os nazis procuraram organizar servindo-se dos seus próprios condenados. Fotogramas sucessivos da película recolocam no espaço cruzado pela câmara de Daniel Blaufuks uma vida que ali, entre o pavor mais extremo, um dia ficcionou uma felicidade que não existiu. Mesmo no final do volume, colado à contracapa, um dvd reproduz o filme, agora filtrado a cor de sangue (a cor de sangue mesmo). Talvez assim, e pela primeira vez, ele possa ser visto como o viram os prisioneiros que nele podemos agora observar a partir do conforto dos nossos ecrãs. E que sabemos mortos. Todos eles.