Completado o esclarecimento acerca da intenção que o Bruno, a meu ver de forma um pouco equívoca, pôs nas minhas palavras, passo agora a algumas ideias avulsas que se prendem, directa ou indirectamente, com o post dos Avatares.
Parece-me estar muito mais próximo do posicionamento do Bruno do que suposto seria diante de uma questão tão séria quanto aquela que ele coloca ao demarcar-se daquilo que eu possa ter escrito. Essa aproximação advém, principalmente, do facto de, ainda que contaminado por algumas opiniões que tendem a tornar-se mainstream no campo de uma certa esquerda, ele recusar acepções maniqueias a propósito de «bons» e «maus», de «nós» e «eles», de «ser por» ou de «ser contra». Creio, sem qualquer hipocrisia, que só a inteligência, o conhecimento e a honestidade – para mim, reclamo apenas a terceira destas características – permitem, como acontece com o Bruno, o assumir de posições complexas, bem mais difíceis de sustentar do que aquelas que identificam os pastores e orientam os seus rebanhos.
1 – Como nesta altura se terá percebido já, o «discurso do nós e eles» não o partilho, de forma alguma. Mas sei que dificilmente podemos fugir-lhe, uma vez que ele é constantemente avançado sobretudo por uma das partes da contenda (sim, trata-se de uma contenda, e bem grave). E essa parte é precisamente aquela que tomou a ofensiva. Falo, claro, do extremismo islâmico, que não me parece representar uma consequência do embate, ou um sintoma dele, mas ser antes a sua causa mais imediata (embora não a mais profunda). São precisos discernimento e coragem para escapar ao separar das águas.
2 – É inegável, ao contrário daquilo que algumas boas consciências proclamam ou que leituras posteriores têm tentado estabelecer, que o Islão nasceu historicamente como religião de guerra e o cristianismo apareceu como religião de paz (começando ab ovo pelo conhecido distanciamento do próprio Cristo em relação às intenções subversivas dos zelotas). Se a tradição islâmica viveu depois momentos de aceitação e de diálogo – o que, sem dúvida, aconteceu (pelo menos desde o quinto califa Harun al-Rachid, correspondente de Carlos Magno e senhor da ficcionada Scheherazade) – também o cristianismo conheceu, como todos sabemos, o mais atroz estado de barbárie. Mas as matrizes são distintas, independentemente das nossas vontades ou desejos.
3 – Já não sei onde se pode chegar com a recorrente exaltação do «Islão moderado». Admito que essa moderação exista, e sobretudo que existam muçulmanos sensatos e amantes da paz, pelo menos entre sectores da débil classe média dos países islâmicos e entre alguns dos seus intelectuais, mas penso que ela jaz calcada na rua pelos gritos de «Allahu akhbar!» e pela defesa intolerante da jihad como essência do Islão. E, no caso de existir, se não será a compreensão ou a mudez diante dos seus algozes o pior serviço que lhe podemos prestar.
4 – Não me parece que seja ineficaz ou incorrecta, perante o fundamentalismo, uma defesa tenaz e sem concessões de conquistas do género humano, como sejam a liberdade de culto e de opinião, o laicismo, a igualitarização da mulher, o reconhecimento dos direitos e da diferença das minorias étnicas ou sexuais. Argumentar – sei que o Bruno não o faz, mas fazem-nos alguns dos que vivem obcecados com o velho «remorso» ocidental que o marxismo fez florescer à escala planetária – que se devem «respeitar», na sua «diferença», atrocidades e violações de conquistas essenciais apenas porque elas se inscrevem numa tradição cultural outra, parece-me alguma coisa de politicamente inaceitável.
5 – O relativismo cultural permitiu, sem dúvida, grandes passos em frente, como o reconhecimento de um importante espírito de tolerância civil e religiosa. Infelizmente, deixou-se perverter pela impossibilidade de colocar limite à permissividade absoluta que, implicitamente, acabou por integrar. Gostava de saber, assim apenas num parágrafo, o que pensam os seus defensores de um diploma como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948. É só uma dúvida que tenho.
Concluo estes parágrafos um tanto dispersos – embora nada vagos, e que já ultrapassaram em muito a pequena divergência com o BSM – com um citação de Samir Kassir, executado em Beirute (veja-se este post) por defender, como «desgraça árabe», a destruição de uma tradição de aceitação, que os regimes teocráticos e antidemocráticos que dominam a generalidade do «mundo árabe» se têm esforçado por apagar da face da Terra. De forma a continuarem a oprimir a grande massa de pessoas pobres, ignorantes e crédulas que dominam sem qualquer controlo.
«Enquanto resistência à opressão, [a ascensão do Islão político] resulta também do fracasso do Estado moderno e do igualitarismo das ideologias do progresso, e, neste sentido, aparenta-se à ascensão dos fascismos na Europa. Com efeito, uma vez despojados do véu religioso que os reveste, os comportamentos sociais dos movimentos islamitas apresentam muitas analogias com as ditaduras fascistas.»
Estaremos nós, aqueles a quem esta possibilidade jamais será indiferente, e ainda que pelo silêncio, ou por tacticismo, dispostos a pactuar com essa emergência?