Nas últimas noites tenho encerrado a jornada lendo algumas páginas da colectânea de crónicas de Manuel António Pina que acaba de sair (Por outras palavras, edição da Modo de Ler). A maioria delas já eu tinha lido, no exacto lugar ao qual foram originalmente destinadas. Sou, aliás, leitor contumaz de tudo aquilo que o escritor escreve, sempre na tentativa gorada de encontrar uma palavra, um juízo, uma atitude que me desgoste, que ache deslocada, ou da qual me sinta suficientemente distanciado para poder testar a vontade física, que mantenho desde que me conheço e já me apontaram (provavelmente com razão) como doentia, de descobrir defeitos na perfeição. Será, por isso, escusado dizer que recomendo, e muito, estas trezentas e tal páginas, garantindo que, se sinto os olhos a fecharem ao fim de uma dúzia delas, é só porque geralmente já passa das três da manhã.
Este post não é, porém, sobre o livro de Manuel António Pina. É sobre uma sua evocação, nele contida, que me tocou de repente a memória. Lembra Pina, numa crónica de 2003, a propósito de um encontro breve mas inesquecível com o poeta Ruy Belo, uma manifestação estudantil na Baixa do Porto «contra a Queima das Fitas». Não sei o que pensará hoje a maioria dos estudantes universitários de tal evocação e da importância que ela teve para um certo padrão de resistência ao velho Estado Novo. Admito que seja algo de estranho. Como alguém contar que um dia vibrou com os golos de Figueiredo ou que a sua primeira erecção oficial foi instigada por um fotograma de Silvana Mangano em Riso Amaro. Mas posso garantir que não se trata de sinal de confusão da memória: participei em Maio de 1972, mais a sul, numa manifestação contra uma tentativa de reposição da Queima das Fitas por parte de uns quantos cidadãos próximos da direita extrema. Como poderia esquecer-me se nessa tarde, ao fugir da polícia que carregava sobre os estudantes, perdi um sapato e tive de regressar a casa por becos ínvios, procurando esconder o melhor que podia aquela propensão súbita para coxear um pouco?