Fora dos territórios controlados por regimes ou movimentos de inspiração autoritária, o direito de cada um a dizer aquilo que entenda é, em princípio, total. Como total é o direito dos outros a contradizê-lo, mesmo da forma mais frontal. Ou a responsabilizá-lo, se for preciso. Em democracia, o direito à palavra é inalienável, seja ela a do electricista, a da varina ou a do operador de guindastes. Isto aplica-se também, naturalmente, à recente polémica em redor das afirmações de António Lobo Antunes sobre a sua experiência da Guerra Colonial. Nelas o escritor referiu «factos» que declarou ter presenciado e que se traduziram em generalizações abusivas sobre o comportamento dos militares portugueses durante a Guerra Colonial. Nada do que Lobo Antunes contou se encontra provado, e nenhum outro testemunho, entre centenas de milhares de pessoas envolvidas no conflito, aflora sequer situações como aquelas que mencionou. Por isso, é muito natural que quem possua diferente perspectiva presencial da experiência da guerra se sinta incomodado pelos ecos de uma memória inventada e reaja com veemência. Podem fazê-lo outros ex-militares, antigos guerrilheiros, colonos de torna-viagem, jornalistas, historiadores e cidadãos informados. No que me toca, posso dizer que jamais me constou que pudessem ter ocorrido, de forma sistemática, apelos institucionais declarados à prática da chacina ou da tortura pelos soldados portugueses, embora, evidentemente, estas tenham acontecido em alguns momentos. Por isso, não tenho dúvida alguma em afirmar que o que Lobo Antunes referiu como experiência corresponde, no máximo, a situações pontuais a partir das quais fez generalizações desajustadas.
Mas a reacção de uns quantos militares portugueses, com maiores ou menores responsabilidades na condução da Guerra em África, é completamente desproporcionada e absurda, digna apenas de quem desconhece a essência da diferença de perspectiva e do direito à livre expressão próprios das sociedades democráticas. Ameaçar dar «um par de murros em público» ou «ir ao focinho» do escritor – a quem chamam aliás «bandalho» e… «atrasado mental» –, é, para além da bravata recorrente nos códigos de conduta de muitas dessas pessoas, algo de inaceitável e que configura um apelo à violência e mesmo ao crime. Alguém deveria explicá-lo a estes cidadãos, que no passado se limitaram a acatar ordens e, em muitos casos, a pactuar, activamente ou pelo silêncio, com uma guerra injusta que insistem em conservar «limpa». O coronel Carlos Matos Gomes, que escreve romances sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz e não faz parte deste grupo, lembrou a propósito: «Há sempre uns patrioteiros que surgem assim no final destas coisas e penso que será também um sinónimo de senilidade. Penso que não faz sentido algum, nem da parte do Lobo Antunes, como ex-combatente, nem da parte destes militares». Juntando, com algum sentido crítico, que «na patetice estão bem uns para os outros». Realmente, a resposta de António Lobo Antunes, dizendo não ter «medo do confronto físico», e estar até em estado de prontidão para um eventual encontro cara a cara com os militares ressabiados, não ajuda muito e é desnecessária. A democracia não se funda na força dos punhos mas na energia das palavras que esclarecem. E isto aplica-se também a militares e a escritores.