Seguia num velho autocarro que, em final de tarde, atravessava a Mancha rumo a Barcelona. O machimbombo tinha uma espécie de animação cultural: um motorista entradote mas bastante jovial, que intercalava horríveis cassetes contendo extractos de zarzuelas, interpretadas pela Orquestra y Coros da Radio Nacional de España, com obtusas anedotas «de andaluzes». Em alguns casos, estas pareciam-me até ser a cópia, se não o original, das nossas obtusas anedotas «de alentejanos». De tempos a tempos, conseguia abstrair-me do ruído de fundo e olhar a paisagem que era para mim aquela que havia associado à figura do Quixote. Não a do romance, que à época ainda não havia lido sequer, mas a que obtivera com a mistura de uma versão simplificada, requisitada na carrinha Citroën da biblioteca-itinerante da Gulbenkian, com aquela retirada da projecção televisiva do velho filme de Rafael Gil, rodado em 1947 (relembro agora, recorrendo ao Google, com Sarita Montiel e um ainda jovem Fernando Rey). Reencontrei essa paisagem extensa, de planícies de um amarelo-torrado provocado pela presença dos campos de trigo e da terra argilosa, ontem mesmo, ao ver Volver, o último filme de Pedro Almodovar. O filme é belo de novo, e intenso como sempre, retomando os temas e os tipos que são recorrentes da cinematografia do realizador, embora, talvez por isso mesmo, não me tenha parecido particularmente original. Mas as viagens transmancha daquele grupo insólito de mulheres de três gerações, numa velha carripana vermelho-barro, sob um sol inconfundível e uma poeira que parecia jamais assentar, fez-me recuperar aquela travessia, há mais de trinta anos, pelo cenário real de um imaginado Quixote. Para mim, as mais emotivas sequências do filme.