Na longa abordagem que faz das «religiões do livro», a reflexão teológica de Hans Küng propõe-nos uma política de moderação que pretende projectar as bases de um efectivo ecumenismo. Este não pode traduzir apenas um processo de abertura e de colaboração inter-religiosa, devendo ir bastante mais longe, até à real aproximação das várias formas de fé e à integração do próprio mundo secular. É esse o objectivo principal prosseguido na trilogia que compôs sobre o judaísmo (1991), o cristianismo (1994) e o islamismo (2004). Küng escreve sempre com uma agenda omnipresente – «não estou primariamente interessado no passado, mas sim no presente» – que determina todo o seu trabalho de pesquisa, interpretação e análise. No volume sobre o Islão, agora traduzido em Portugal, este objectivo surge até reforçado, dada a crescente importância da religião corânica na construção da contemporaneidade. O teólogo refere o modo como no mundo ocidental, logo após o fim da Guerra Fria, se procurou substituir a imagem do comunismo pela do islamismo como representação do inimigo, suscitando equívocos, exacerbando diferenças e justificando por essa via a corrida ao armamento e a criação de uma atmosfera favorável a mais e mais guerras. Neste contexto, o desenvolvimento de processos de compreensão e de laços de entendimento parece-lhe dramaticamente imprescindível para afastar o confronto de culturas, ou o «choque de civilizações», como cenário de um futuro próximo.
Procura assim produzir, como nos propõe, «uma síntese de dimensões simultaneamente históricas e sistemáticas», visando obter uma perspectiva multidimensional do Islão em ordem a promover uma nova fase na relação entre civilizações, nações e religiões e uma mais rápida capacidade de resposta perante os rastilhos de incompreensão e violência que por todo o lado têm sido ateados. Fá-lo em mais de 800 páginas que constituem uma espécie de enciclopédia do Islão e das relações entre cristãos e muçulmanos no passado e no presente. Partindo de uma abordagem detalhada da construção histórica da imagem hostil e da imagem ideal da religião de Maomé – a partir de uma experiência anterior, enfatiza Küng, que é comum à das outras grandes religiões monoteístas –, analisa aquela que considera ser a sua imagem real, actual, para, finalmente, lançar um olhar sobre uma imagem da esperança capaz de afastar a hostilidade que com preocupação evoca no início do livro. Pelo meio vai detectando todas as referências e sinais que indiciem a existência de um «Islão crítico», transigente, capaz de renovar o seu próprio universo a partir de dentro e, também ele, de estender a mão às outras religiões. É este o Islão que considera «verdadeiro», contra o outro, «desfigurado, falseado e profanado» tanto pelos seus detractores como por muitos dos seus prosélitos. O paradoxo da obra reside no facto de Küng procurar essa imagem de esperança privilegiando menos a construção da identidade muçulmana, o seu trajecto solitário e intransigente, do que a procura de uma noção de abertura e de respeito pelo outro que lhe não é forçosamente imanente. Mas é também nesta dimensão contraditória, e por isso dialogante, que reside o interesse deste livro entusiasta com o qual se aprende a cada parágrafo.
[Hans Küng, Islão. Passado, Presente e Futuro. Edições 70. Trad. de Lino Marques. 832 págs. Revisitação de um texto publicado na revista LER de Setembro de 2010.]