No filme A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, a frase é de Bruno Hempf, o ficcionado ministro da Cultura da RDA, e destina-se a servir o elogio público de Georg Dreyman, um escritor que ele crê, apesar das suspeitas da Stasi, ser fiel ao regime: «Como disse um grande filósofo marxista cujo nome neste momento me escapa, os escritores são os engenheiros das almas.» O «esquecimento» pretendia ser irónico, uma vez que essa frase foi repetidamente atribuída a José Estaline, que aliás a teria aplicado para se referir aos intelectuais no seu conjunto. Nela, a perversão encontra-se num entendimento puramente instrumental do papel do escritor ou do artista, apenas toleráveis enquanto intelectuais se aplicados sem hesitações numa «causa do socialismo» orientada por quem se arrogava dirigi-la num sentido unívoco e historicamente irrevogável. Materializado na União Soviética de forma crescentemente inflexível a partir de Junho de 1925, quando se adoptou uma resolução «Sobre a política do Partido no domínio da literatura artística» assinada por Nikolai Bukharine, o princípio passou posteriormente a ser aplicado na generalidade dos Estados do chamado «socialismo real». Aí determinando privilégios e exclusões, o direito à voz ou a obrigação do silêncio, por vezes a linha entre a vida e a morte.
Nos partidos comunistas dos países capitalistas esta aproximação teve um sentido diferente. Sendo partidos que se batiam para alcançar o poder e não para conservá-lo, ofereciam ao intelectual um outro papel, mais livre, mais insubordinado, mais empenhado numa ideia de justiça que facilmente seduziu e motivou um grande número de pessoas, homens e mulheres dispostos a colocar o seu pensamento, a sua técnica e a sua arte, por vezes mesmo o seu bem-estar, ao serviço de causas, circunstanciais ou de longo prazo, que consideravam justas e «necessárias». Muitos intelectuais ocidentais aderiram assim a uma espécie de «religião secular» – a expressão foi usada por Raymond Aron em L’Opium des Intellectuels – que giraria em torno da ideia de Revolução. Não uma qualquer revolução, mas «a Revolução» que se consubstanciara em Outubro de 1917, inaugurando o que se acreditava ser uma era eterna «de progresso, justiça social, racionalidade científica, paz e igualdade». Fora dos «estados de trabalhadores», esta manter-se-ia sempre associada à actividade revolucionária dos partidos comunistas e às suas batalhas. Foi este o espaço dos compagnons de route, os companheiros de jornada, com e sem cartão de militante, que, pelo menos até ao terramoto de 1968, concorreram de uma forma directa ou lateral para uma causa comum.
Assim aconteceu também em Portugal, onde o Partido Comunista soube ir congregando os esforços de imensos escritores, professores, artistas, jornalistas ou pensadores que durante muito tempo nele viram, e com razão, a única força firme e consequente na luta contra o regime salazarista. E também um papel de representação avançada desse «farol de esperança» que acreditaram ser desempenhado pela União Soviética. Foram inúmeros – vejam-se a propósito os trabalhos sobre o tema de historiadores como João Madeira, António Ventura, José Neves e José Pacheco Pereira, entre outros – os intelectuais portugueses, muitos deles dos mais notáveis, que militaram no PCP ou com ele colaboraram de uma forma continuada ou episódica. Ainda há poucas décadas, aliás, os intelectuais comunistas e o seu «Sector» desempenhavam um papel combativo e decisivo na vida cultural do país e na luta democrática por uma sociedade que acreditavam mais justa. Reconhecido por muitos dos que não partilhavam dos seus ideais e de algumas das suas posições públicas.
É justamente por isto que se torna bastante crua a curta lista de personalidades, a maioria de intelectuais, que vem agora a público apoiar a inócua candidatura do PCP-Francisco Lopes à presidência da República. Tirando dois ou três nomes respeitáveis mas previsíveis, esta lista constitui um bom retrato da perda real de influência dinâmica dos comunistas no universo da criação e do pensamento crítico, juntando pessoas pouco ou nada «independentes» a outras sem um papel realmente reconhecido na linha da frente da cultura portuguesa da primeira década deste século. Não se trata de um bom sinal, uma vez que, independentemente da sua actual gestão nacional-obreirista, a força que o PCP representa é ainda indispensável – sobretudo numa sociedade que vive uma fase particularmente crítica, na qual os direitos das maiorias são sistematicamente menosprezados – e os rostos sobrantes e mais visíveis da sua massa crítica deveriam, por isso, ter uma outra dinâmica e um outro reconhecimento público. Esperemos que ele não indicie um epílogo, o fim natural de uma era de intelectuais combatentes à sombra da antiga bandeira vermelha, protagonistas da linha da frente da luta pelo socialismo. Mas se assim tiver de acontecer, outra linha de fogo surgirá. Não pela força do destino ou porque tal constitua uma «lei da história» – ou «da vida», como soletra o desgraçado jargão –, mas simplesmente porque existirá sempre um vínculo, por parte dos actores sociais da reflexão e da capacidade inventiva, a um anseio de revolta e a um forte ideal de justiça. Está nos livros.
Pós-escrito – Também eu não.
Pós-escrito (2) – É claro que este post derivou de uma notícia amplamente divulgada na comunicação social e que falava apenas de 30 «personalidades». Mas é óbvio também que o PCP não terá, por enquanto, dificuldade em reunir 300, ou mesmo 3.000, ainda que quase todas apenas dentro da sua área de influência. Se o tivesse, não me teria sequer dado ao trabalho de comentar o episódio. Relendo-se com atenção e sem preconceitos aquilo que escrevi se entenderá, todavia, que não é o número absoluto a ser questionado. O que me parece sintomática é a qualidade geral, uma vez que noutros tempos não haveria dificuldade em destacar 300 nomes de intelectuais – independentemente da revisão que o conceito em si sofre actualmente – reconhecidos num plano nacional e com um papel dinâmico e destacado na primeira linha do ensino, da investigação científica, da literatura, das artes plásticas, do cinema, do teatro, da música, da dança, do pensamento político, da teologia e por aí afora. Aliás, o que ficou escrito em nada afecta a honorabilidade das pessoas que assinaram, algumas das quais até estimo ou considero pelo seu trabalho: falo do todo e não das partes, do sentido mais fundo e não do pormenor de circunstância, do estado ao qual chegou o PCP e não da campanha eleitoral do cidadão Francisco Lopes. O post tem quatro parágrafos, não apenas o último…