Kapuściński Non-Fiction, de Artur Domoslawski
Uma vez, no século passado, antes ainda de Abril de 1974, tentava eu sair do Porto com destino ao sul – tinha ido a uma manifestação-relâmpago no 1º de Maio e ainda vinha com os valores da adrenalina em alta – quando apanhei boleia de um sujeito que conduzia um carro topo de gama e tinha todo o aspecto de um daqueles contra os quais os meus camaradas me tinham prevenido. Éramos dois rapazes e eu, o mais tímido dos dois, preferi o banco de trás, no qual sentiria menos o dever de fazer conversa com «o burguês». Foi nessa altura que vi, sobre o banco traseiro, um exemplar de um livro de Lenine, Como Iludir o Povo, julgo que ainda na velha edição da Centelha. Puro engano do homem, naturalmente, pois se é verdade que Lenine sabia enganar o povo, não era bem no sentido que aquele sujeito com ele provavelmente esperava treinar. Com a devida distância, talvez tenha sido por uma confusão análoga que Como falar dos livros que não lemos?, do psicanalista e professor de literatura Pierre Bayard, chegou em 2007 a ser o no. 1 do top de vendas em França.
Mas claro que este título é uma piada e apenas enganará os tolos. Só mesmo um viciado na leitura pode escrever um livro como aquele, que trata sobretudo do drama do grande leitor, ou do crítico que o é também forçosamente, quando colocado perante a paisagem vasta até à desmesura, e que não pára de crescer, dos livros que jamais poderá ler pois não tem tempo de vida suficiente para o fazer: «a leitura é primeiro que tudo a não-leitura e mesmo para os grandes leitores que lhe consagram toda a sua existência, o simples gesto de pegar e de abrir um livro encobre sempre o gesto inverso.» Por isso são tão importantes os livros que lemos quanto os livros que não lemos, ou que ainda não lemos. Se não formos distraídos, uns levam-nos a outros e por uns poderemos entrever aquilo que os outros poderão conter, levando-nos a procurá-los, a oferecê-los ou mesmo a falar deles a quem nos queira ouvir Quem nunca recomendou um livro que jamais leu – seja ele a Bíblia Sagrada, um romance de Salman Rushdie ou a biografia de José Mourinho – que atire a primeira pedra.
É a partir desta ideia que passarei a falar aqui, de vez em quando, dos livros que ainda não li ou que jamais lerei. Dos quais sempre adiei a leitura, como os sete tomos de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, que cheguei a ter alinhadinhos na estante. De quem não tenho vontade alguma de ler o quer que seja (admito que por ignorância e mau feito), como qualquer romance, apostilha ou conta da mercearia de José Rodrigues dos Santos. De quem nada posso ler uma vez que se trata de um autor que não existe e acabo de inventar, como o austríaco Paul Wassenberger. Ou de autores que conheço mas de quem não li «aquele» apenas porque ainda o não apanhei a jeito, como Non-Fiction, a biografia de Ryszard Kapuściński (1932-2007) escrita pelo jornalista Artur Domoslawski e que é já um best-seller na Polónia. Ela promete dar a conhecer melhor o passado de espião ao serviço do regime comunista polaco e de grande cultor de um certo «jornalismo ficcionado» que, post-mortem, fez e faz dele uma figura simultaneamente duvidosa e fascinante. Este está na calha, podem crer.