Não sou propriamente um admirador absoluto dessa força da natureza que é o filósofo esloveno Slavoj Žižek e nem sempre acompanho um certo «equilibrismo retórico», por vezes sob a forma de patchwork, que escolta algumas das suas iluminações. Mas talvez por isso mesmo me pareça particularmente lúcido e útil o seu artigo «Para sair da armadilha», recentemente editado pela New Left Review e agora publicado na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. Dele transcrevo alguns fragmentos esclarecedores. Talvez dêem para percebermos o esforço de Žižek para conceber «outro mundo possível» associando-o a um combate anticapitalista que não segue a linha maximalista do «quanto pior, melhor». Que não prefere o caos que conduz ao desastre à ordem injusta e imoral imposta pelo domínio integral do dinheiro. Uma reflexão simultaneamente realista e radical que pode ajudar a encontrar um caminho sem ficarmos à espera que alguém suficientemente sábio, bondoso ou divino no-lo indique.
Para sair da armadilha
Slavoj Žižek
Le Monde Diplomatique, edição portuguesa – Novembro de 2010
Uma coisa é certa: após décadas de Estado-providência, durante as quais os cortes orçamentais continuavam a ser limitados e sempre acompanhados da promessa de que as coisas voltariam um dia ao normal, entramos hoje num estado de emergência económica permanente. Uma nova era que traz consigo a promessa de planos de austeridade cada vez mais severos, de cortes cada vez mais drásticos na saúde, nas pensões de reforma e na educação, bem como uma maior precarização do emprego. Encostada à parede, a esquerda deve assumir o desafio enorme de explicar que a crise económica é, antes de mais, uma crise política — que não tem nada de natural, que o sistema existente resulta de uma série de decisões intrinsecamente políticas —, continuando consciente de que este sistema, enquanto nos mantivermos no seu quadro, obedece a uma lógica pseudonatural cujas regras não é possível mudar sem provocar um desastre económico.
Será ilusório esperar que a omnipresente crise só tenha consequências limitadas que o capitalismo europeu continue a garantir um nível de vida justo a uma maioria da população. E que espantosa concepção da «radicalidade» esta, a de apostar unicamente nas circunstâncias para atenuar os estragos da crise… Certamente que o que não falta são os anticapitalistas. Estamos literalmente submergidos por acusações contra os horrores do capitalismo: dia após dia vemos as investigações jornalísticas, as reportagens televisivas e os êxitos editoriais consagrados aos industriais que destroem o ambiente, aos banqueiros corruptos que amealham bónus astronómicos enquanto os seus cofres sugam o dinheiro público, aos fornecedores de cadeias de pronto-a-vestir que empregam crianças que trabalham doze horas por dia.
Contudo, por muito cortantes que estas críticas possam parecer, elas acabam por não ter qualquer impacto porque nunca põem em causa o quadro liberal-democrático no interior do qual o capitalismo faz os seus estragos. O objectivo, explícito ou implícito, consiste invariavelmente em regular o capitalismo – sob a pressão da comunicação social, do legislador ou de investigações policiais honestas – e sobretudo, não em contestar os mecanismos institucionais do Estado de direito burguês.
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Hoje, a ideologia dominante esforça-se por nos persuadir da impossibilidade de uma mudança radical, da impossibilidade de uma abolição do capitalismo, da impossibilidade da criação de uma democracia que se não reduza a um jogo parlamentar corrompido que consegue, ao mesmo tempo, tornar invisível o antagonismo que atravessa as nossas sociedades. É por isso que Jacques Lacan, para ultrapassar estas barreiras ideológicas, substituía a fórmula «tudo é possível» pela constatação mais sóbria de que «o impossível acontece».
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A nossa situação actual situa-se no ponto exactamente oposto ao da que prevalecia no início do século XX, quando a esquerda sabia o que devia fazer, mas tinha de esperar pacientemente o momento propício para passar à acção. Hoje, não sabemos o que devemos fazer, mas temos de agir imediatamente, porque a nossa inércia pode ter em breve consequências desastrosas. Mais do que nunca, estamos obrigados a viver como se fossemos livres.