Em crónica saída na revista New Statesman, o escritor ucraniano Andrei Kurkov descreveu Sussurros, de Orlando Figes, como «uma fascinante enciclopédia das relações humanas», considerando-o, a par do Arquipélago Gulag, de Soljenitsine, e dos Contos de Kolima, de Varlam Chalamov, como «um dos maiores monumentos literários do povo soviético». Não se trata de uma desnecessária hipérbole, pois esta é, de facto, uma obra soberba e claramente inovadora. Convém à partida desvanecer um eventual equívoco: este não é mais um dos muitos estudos históricos descritivos e estatísticos sobre Estaline, o estalinismo e as suas vítimas proporcionado pela abertura dos arquivos que se seguiu à Glasnost. Mergulhando nas sombras, surge antes como uma abordagem da vida diária das pessoas comuns e da forma como esta foi condicionada pela engenharia social do «homem novo».
O próprio título traduz uma das dimensões da realidade do quotidiano na antiga União Soviética: «sussurro» era o ténue som emitido por alguém que desejava passar despercebido e escondia a sua voz, mas na língua russa é também o modo de soprar ao ouvido das autoridade e da polícia aquilo que alguém disse, uma prática vulgarizada a partir da década de 1920. A atenção prestada às particularidades da vida privada e o privilegiar da palavra murmurada configuram assim a dimensão mais claramente inovadora deste livro de Figes, necessariamente apoiado no valor documental da memória individual. Justificando o recurso sistemático a cerca de 500 entrevistas, o autor declara mesmo o testemunho oral como mais fiável do que as evocações escritas, uma vez que pode sempre ser cruzado com outros e directamente confrontado com a certeza dos factos.
Este é também um trabalho bastante completo por agregar as transformações que corresponderam no território da vida privada às grandes opções políticas dos bolcheviques, nem sempre uniformes nos anos que se seguiram imediatamente à revolução de Outubro mas cada vez mais categóricas e inquestionáveis à medida que José Estaline foi concentrando o poder nas suas mãos. Acompanham-se assim, ano após ano, as alterações na organização do quotidiano e das atitudes que seguiram as colectivizações forçadas, o Grande Terror dos anos trinta, a Segunda Guerra Mundial e a época que se lhe seguiu, chegando mesmo aquém de 1953, o ano da morte do ditador, uma vez que o seu desaparecimento não alterou o essencial de um conjunto de características comportamentais, apoiadas na ambiguidade e no peso do não-dito, incorporadas pelo conjunto da sociedade.
Tal como o historiador britânico tem o cuidado de assinalar, um certo padrão de «mentalidade soviética» reflectida neste livro ocupa na maioria dos casos «uma região da consciência de onde as crenças e os valores mais antigos foram suspensos ou suprimidos», sendo os novos adoptados pelas pessoas comuns, não tanto em função de um desejo ardente de se tornarem ‘soviéticas’ mas «em consequência da vergonha e do medo» de o não serem. Vergonha, pois, de se possuir a origem social errada, de estar-se impedido de aderir à norma, de ser-se por isso qualificado como «inimigo do povo». E medo, pavor, de vir a ser-se inapelavelmente punido por isso, num contexto de terror erguido desde a base, a partir da escola, do local de trabalho ou mesmo do interior da família, com vista a fazer desaparecer de vez os sinais dos antigos valores e da antiga ordem social. Os pequenos episódios, os trajectos pessoais e as experiências partilhadas, reveladoras deste processo, são entretanto apresentados ao leitor de uma forma magnífica, apoiados numa capacidade narrativa envolvente, com a marca do autor, que a tradução portuguesa cuidadosamente preserva. Sussurros é um livro espantoso. Poucos daqueles que o lerem irão esquecê-lo.
Orlando Figes, Sussurros. A Vida Privada na Rússia de Estaline. Alêtheia Editores. Trad. de Maria José Figueiredo e revisão de José João Leiria. 740 págs. Versão revista de um recensão saída na LER de Janeiro de 2011.