Pior que um silêncio imposto é o apagamento das circunstâncias da sua imposição. Os silenciados cumprem então uma dupla pena: aquela à qual foram socialmente sujeitos e a que os impele para um irrevogável esquecimento. Vidas singulares que foram diminuídas, quebradas, interrompidas, e, no final, reduzidas a coisa nenhuma. Formas de emudecimento que adquiriram contornos singularmente dramáticos quando os totalitarismos as transformaram em simples factores instrumentais da sua monstruosa autoridade.
Por isso se torna indispensável, nas sociedades democráticas, a organização de um esforço destinado, tanto quanto a dar voz àqueles que não têm voz, a fazer ouvir os ecos dos silenciados. Esse esforço não pode devolver-lhes a parcela de existência que para sempre lhes foi roubada, mas pode, pelo menos em alguns casos, lançar um pouco de luz sobre o frágil rasto da sua exemplar vontade de escolherem o próprio caminho ou de pensarem a contracorrente. Ao mesmo tempo, pode projectar para as gerações mais recentes, que por vezes os desconhecem, a existência ou a forma de determinados casos de apagamento. Para que elas possam conhecer por si próprias de que maneira e em nome de que princípios se tornou possível, e continua a ser possível, esmagar aquilo que de mais intrinsecamente humano possuímos: a capacidade para fruir uma liberdade sem adjectivos e para construir um destino que podemos a qualquer instante fazer reverter.
Debaixo das experiências totalitárias, este pesado circunstancialismo tornou-se mais presente do que nunca, pois foi imposto em todos os recantos e não apenas na sua dimensão meramente policial e penal. Porque pôde ir até ao mais fundo das consciências. Porque em alguns momentos feriu até a capacidade para pensar o mundo de uma forma autónoma. Por isso, poucos foram aqueles que perseguidos, vilipendiados e reduzidos ao silêncio puderem enfrentá-lo com uma obra capaz de ultrapassar as circunstâncias e de lhes sobreviver. Poucos, muito poucos, foram os homens e as mulheres que, em tempos sombrios, puderam alimentar uma luz que emanasse, como escreveu Hannah Arendt, «da chama incerta, vacilante, e muitas vezes ténue». Luz que esses poucos foram capazes de «alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo». A maioria, porém, jamais o conseguiu, reduzida ao silêncio – ainda que sob a capa protectora das melhores utopias –, pela brutal repressão, pela censura sem tréguas, pela prisão prolongada, pelo trabalho extenuante, pelo ruído seco do tiro na nuca.
A partir de Setembro seguirei aqui o rasto de algumas dessas vidas. Tentando mapear dolorosamente a linha frágil e irregular que através delas foi separando a esperança do horror. E este do esquecimento.