Este é já o meu quarto post sobre a Líbia. Mas sucedem-se as urgências, e com elas as razões fortes para voltar ao assunto.
Olho uma sequência de fotografias de rebeldes líbios levantados em armas contra Kadhafi e sou obrigado a juntar-lhes uma nota pessoal. Fui militar durante três anos e estive envolvido em situações de guerra. Outra guerra, diferente, é verdade, mas nem por isso menos guerra, naquilo que esta tem de constante e universal. Por isso, posso dizer que não a conheço apenas dos livros, dos jornais ou dos documentários: tenho uma memória viva de ver matar e de ver morrer, participei em acções de combate, e, antes disso, treinei muitos, largas centenas, talvez alguns milhares de homens, para as enfrentarem. Acreditem que não é fácil conviver com esta memória, que jamais se é capaz de brincar com ela, que nos fica para sempre uma espécie de cumplicidade para com aqueles que, à distância, observamos em idêntico cenário. Banal? Talvez sim, mas verdadeiro.
Por isso não me é possível ver sem um estremecimento, sobre a paisagem líbia, bandos de pessoas mal armadas, sem uma disciplina rudimentar, sem instrução básica de tiro, defesa e progressão no terreno, a enfrentarem tropas bem equipadas e altamente disciplinadas. Sei que é belo, provavelmente comovente, ver todos aqueles jovens e menos jovens «fardados» muito livremente, de acordo com uma espécie de código baseado num imaginário revolucionário global, a lutarem por uma ideia de liberdade que têm até dificuldade em definir. Não podemos deixar de admirar a sua coragem insana, à beira da imolação, projectada numa luta sem quartel e claramente desigual. Mas desde o primeiro momento esperei que fosse acontecer aquilo que agora está a acontecer e os repórteres de guerra relatam: civis armados que disparam à toa, desperdiçando munições, sem um alvo definido, sem um plano, morrendo em glória mas sem qualquer utilidade debaixo dos disparos dos caças, dos helicópteros e da artilharia pesada, com as câmaras das televisões ou o silêncio por testemunhas. A sua bravura suicida não nos deixa indiferentes.
No entanto, não nos sentirmos indiferentes de nada serve. Trata-se de uma luta desigual, com contornos de genocídio, e numa situação desta natureza – aqui, como há anos no Ruanda ou na Bósnia, como em tempos na Polónia ou na Finlândia – não é moralmente aceitável permanecermos imóveis, ainda que sob a capa dos grandes princípios proclamados a propósito da não-ingerência e do desejo de não multiplicar as situações de guerra. Porque a guerra aqui já existe. E esta guerra, a de um Estado contra o seu povo insurrecto, nada tem de comparável àquelas impostas pela agressão externa, como aconteceu, é o exemplo que está na cabeça de todos nós, no Iraque. Hoje, no El País, um excelente editorial de Lluís Bassets, significativamente intitulado, «Contra Kadhafi, guerra justa», lembra isso mesmo, proclamando um princípio de urgência: «Não à guerra de Bush, claro está. Não à guerra de Kadhafi contra o seu povo, naturalmente. Mas um rotundo sim e toda a ajuda à guerra do povo líbio contra o ditador que o oprime.»
Não defender a aplicação de medidas militares elementares supervisionadas internacionalmente – com a criação imediata de uma zona de exclusão aérea, apontada a impedir a consumação de uma chacina mecanizada, e com o fornecimento de armas e de alguma tecnologia aos insurrectos – em nome do fantasma do Vietname ou da experiência da invasão americana do Iraque, é, no mínimo, tão criminoso como ter defendido esta última. Uma esquerda autoproclamada coerente, cheia de «bons sentimentos», mas que continua mais preocupada com questões de princípio do que com a necessidade prática, objectiva e urgente, muito realista, de salvar as vidas de dezenas ou centenas de milhares de pessoas que lutam sem meios pela sua liberdade, será por causa disso cúmplice de todo o mal que vier a acontecer. Ao estimular o imobilismo, refugiando-se em simples declarações políticas ou na pena dos outros, acabará por favorecer o ditador de Tripoli. Não o fará por cobardia, mas por uma cegueira assassina.